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Enviado ao Congresso para aprovação no último dia 4 de março, o projeto de lei que pretende regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos é alvo de polêmicas. O questionamento central é se esses trabalhadores devem ser enquadrados como empregados ou prestadores de serviço e se a regulamentação faz sentido ou não para os envolvidos. A celeuma é fruto da incerteza causada pela falta de regulamentação dessa modalidade de trabalho que, durante tanto tempo, sobreviveu à míngua de leis que dissessem com clareza qual era a relação entre trabalhadores e plataformas.
Seja você favorável ao enquadramento dos motoristas de aplicativos como empregados ou favorável à manutenção da independência desses trabalhadores como autônomos, temos de concordar com um ponto: há uma carência na legislação sobre o tema. Para entendermos melhor as nuances da questão, vamos primeiro definir o que é um empregado, de acordo com a nossa já oitentona Consolidação das Leis do Trabalho: a regra no país é a de que uma pessoa física que trabalha pessoalmente, habitualmente, respondendo ordens e recebendo remuneração é um empregado, com direito a anotação em carteira de trabalho e diversas garantias mínimas.
Não há como criticar especificamente esse entendimento, mas está claro que hoje há novas formas de trabalho além do vínculo empregatício voltado à era industrial. E para essas novas formas nem sempre uma lei aprovada em 1943 será completamente aplicável. A legislação brasileira ainda não traz uma resposta adequada a como os trabalhadores situados nesta exceção dos motoristas de aplicativos devem ser tratados, ficando a cargo do Poder Judiciário, quando provocado, aplicar o direito ao tema. O debate faz-se necessário, uma vez que, segundo levantamento do IBGE de 2022, os motoristas de aplicativos formavam 1,5 milhão de trabalhadores no país.
Hoje, oficialmente, a relação entre os motoristas de aplicativos e as plataformas é de trabalho autônomo. As empresas se sustentam no argumento de que o trabalhador atua somente nos horários que quer, com independência, usando veículo próprio e assumindo o risco da sua atividade, recebendo boa parte do que é pago pelo usuário desses sistemas.
O Projeto de Lei 1471/22, que já conta com mais de uma dezena de acréscimos (entre apensos e acessórios), propõe a criação de uma nova categoria: o “trabalhador autônomo por plataforma”, ou “autônomo plataformizado”. Dispondo sobre questões ligadas à saúde, segurança e vinculação do trabalhador à Previdência Social, o projeto visa garantir uma remuneração mínima a quem atua nessa modalidade, estendendo a eles alguma cobertura securitária. Do lado do governo, a arrecadação pública teria um impacto na casa dos R$ 280 milhões.
Segundo o PL, o trabalhador continuará sendo autônomo. Apenas contará com algumas proteções previamente definidas em lei. É importante citar que o que está em discussão trata somente de motoristas de aplicativo, ou seja, quem atua sobre quatro rodas. A promessa é a de que o trabalho prestado por motociclistas de entregas será alvo de regulamentação futura, já que não houve consenso neste momento entre governo, trabalhadores e empresas desta modalidade.
Aqueles que são contra a regulamentação defendem que alguns trabalhadores sequer desejam ser registrados, exatamente por essa dita “autonomia” comum ao prestador de serviços. Fundamentam a legalidade da condição de autônomos como expressão do livre exercício de atividade econômica estatuída na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica - a Lei 13.784/2019: “Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal. 1º O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.
Na Justiça do Trabalho, há decisões em todos os sentidos – tanto reconhecendo o status de empregado a trabalhadores das plataformas, quanto reconhecendo a autonomia que impede a mesma declaração de vínculo empregatício. Algumas delas eventualmente ganham notoriedade - como a sentença recentemente proferida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, nos Autos da Ação Civil Pública nº 1001379-33.2021.5.02.0004, que condenou a Uber a não somente reconhecer o vínculo de emprego com todos os motoristas da plataforma, mas também a pagar multa de modestos um bilhão de reais. Eis trecho da decisão, proferida em setembro/2023, que já foi alvo de recurso: "Não se trata nem sequer de negligência, imprudência ou imperícia, mas de atos planejados para serem realizados de modo a não cumprir a legislação do trabalho, a previdenciária, de saúde, de assistência, ou seja, agiu claramente com dolo, ou se omitiu em suas obrigações dolosamente, quando tinha o dever constitucional e legal de observar tais normas.”
Efetivamente, o reconhecimento de vínculo empregatício entre plataforma e motorista de aplicativo é o mesmo que declarar a existência de uma fraude à legislação do trabalho. Mas a mesma Lei 13.784/2019 traz disposições que indicariam em sentido contrário: “Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (...) V - gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.
Ora, se a plataforma de aplicativos estaria praticando atos que, por lei, gozariam de presunção de boa-fé, declarar que a relação entre motoristas e plataforma foram planejados para descumprir a legislação trabalhista parece um contrassenso. Com o legislador exercendo a sua função de regulamentar o tema, terá sido dado o primeiro passo para a pacificação da questão – seja pendendo para um ou outro lado da balança.
Abrir mão da disputa pelo vínculo empregatício para reconhecer-se como trabalhador autônomo pode representar vantagem ou desvantagem, dependendo do ponto de vista adotado. O trabalhador autônomo, de fato, tem muita liberdade. Pode trabalhar em horários que melhor lhe couberem e tem remuneração melhor do que a de um vínculo empregatício.
Entretanto, há a questão da incidência de alíquota em favor da Previdência Social, para que o trabalhador autônomo tenha acesso a cobertura securitária. Essa alíquota será de 20% da remuneração para as plataformas, e 7,5% para os trabalhadores. Isso pode provocar um achatamento no valor da remuneração dos motoristas, visto que qualquer acréscimo gerará mais custo às plataformas.
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Há, também, uma clara precarização da relação de trabalho, fruto do retrocesso no mercado de trabalho brasileiro presenciado entre os anos de 2016 e 2022 mencionado pelo próprio Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho. Ainda que esta lei busque garantir direitos mínimos, há de se convir que o “mínimo” apenas remunera minimamente quem se dispõe a passar tantas horas atrás de um volante.
A criação e aprovação de uma lei é o primeiro passo. Ainda que ela venha a sofrer modificações ou acréscimos posteriormente, terá sido o ponto de partida para a regulamentação dessa modalidade de trabalho. À míngua de dispositivos legais, abre-se espaço à livre argumentação e justificação de decisões judiciais, como se o julgador primeiro formasse seu convencimento, e depois buscasse explicar o porquê daquilo. Este caminho naturalmente não é adequado porque cada julgador, naturalmente, traz suas convicções pessoais e, ainda que tente, dificilmente conseguirá proferir um voto, uma sentença completamente desvinculada dessas convicções.
O caminho mais adequado decorre da experiência, do exame de cada caso, da investigação e do teste prático. Talvez o que estejamos presenciando com o Projeto de Lei atualmente em discussão seja exatamente isso: após tantos julgados e tantas opiniões divergentes a respeito de um mesmo assunto, finalmente busca-se criar uma lei que pacifique toda e qualquer discussão. Fica, entretanto, uma ressalva: a sociedade muda constantemente. Uma lei pode atender a este momento histórico, mas se ela não for alvo de constantes atualizações e correções, daqui a alguns anos presenciaremos outro conflito muito similar ao atual.
Arthur Felipe das Chagas Martins é advogado, especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito Acidentário, mestrando em Direito do Trabalho.



