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A rivalidade era forte entre azuis e verdes. Os primeiros se identificavam com a elite e uma ideologia mais conservadora, enquanto que os últimos tinham mais seguidores na classe trabalhadora e queriam políticas mais progressistas. Após uma briga generalizada entre as duas torcidas, vários líderes foram presos pelas autoridades de um governo que perdia apoio popular. As duas facções se uniram e trocaram o esporte pela política, para pedir a queda do governante.

Não era futebol, não era basquete, não era MMA, boxe, vôlei ou futebol americano. Isso ocorreu em Constantinopla (atual Istambul), em 532 d.C., quando duas torcidas de equipes de corridas de bigas deram início a uma revolta que tentou derrubar Justiniano I do comando do Império Bizantino. Não tiveram sucesso – o imperador resistiu, deixando cerca de 30 mil mortos no processo –, mas mostraram que esportes e política correm lado a lado muito antes de um grupo de ingleses inventar um jogo chutando bola ou de um francês recriar os Jogos Olímpicos.

O esporte tem como reação padrão evitar essa relação. O conceito é que, para manter sua pureza, a competição não pode sofrer influências de questões que não se relacionem diretamente ao jogo em si. Claro, também há o lado das grandes entidades que apenas querem mandar no seu universo sem sofrerem interferência de governantes. O problema é que é impossível evitar que os dois mundos se choquem em alguns momentos. Qualquer que seja a modalidade ou o torneio, eles sempre envolvem atletas ou equipes que representam comunidades. Dessa forma, é natural que questões ligadas a esses grupos se manifestem.

Fingir que a política não aparecerá no esporte é utópico

Há exemplos de todos os tipos. Os mais famosos são os boicotes dos Estados Unidos aos Jogos Olímpicos de 1980, em Moscou, com a União Soviética dando o troco quatro anos depois, em Los Angeles. Houve também um caso recente ocorrido no Brasil, com o judoca egípcio Islam El-Shehaby se negando a cumprimentar o israelense Or Sasson após perder uma luta nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro.

Mas há vários outros que escapam do radar de boa parte do público. Os jogadores da seleção de críquete das Índias Ocidentais (ilhas britânicas no Caribe) dos anos 70, provavelmente a melhor da história desse esporte, tiveram de receber o título de “brancos honorários” para poder enfrentar a África do Sul durante o apartheid. Em diversas modalidades, Israel deixou de disputar competições por seu continente, a Ásia, e se tornou europeu para evitar conflitos em eventuais encontros com adversários árabes. No basquete, a seleção croata abandonou o pódio durante a entrega de medalhas no Campeonato Europeu de 1995 para protestar contra a campeã Iugoslávia, com quem estava em guerra.

O futebol é cheio dessas histórias. Em 1969, Honduras e El Salvador protagonizaram a “Guerra do Futebol”, um conflito armado que se ensaiava havia anos por questões políticas e sociais, mas teve como estopim as hostilidades provocadas pelas partidas disputadas entre as seleções dos dois países nas Eliminatórias para a Copa de 1970 (El Salvador conseguiu a classificação). O Derry City, clube da Irlanda do Norte, é obrigado a disputar o campeonato da Irlanda há décadas porque sua torcida é católica e sempre entrava em conflito com as equipes de maioria protestante. Nas Eliminatórias para a Copa de 2010, Coreia do Sul e Coreia do Norte se enfrentaram na China porque a bandeira sul-coreana não poderia ser hasteada em território norte-coreano. Em 1.º de fevereiro deste ano, o atacante Roman Zozulya teve seu contrato com o Rayo Vallecano rescindido um dia após sua assinatura, porque o jogador é acusado de envolvimento com grupos neonazistas na Ucrânia e a torcida do clube espanhol, declaradamente de esquerda, rejeitou o reforço.

A relação entre política e esporte é tão comum que, mesmo onde não há certeza dessa relação, a suspeita existe. Foi o que ocorreu no início deste mês, quando a seleção da Arábia Saudita não respeitou o minuto de silêncio antes do confronto contra a Austrália pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2018. Enquanto os australianos lembravam os mortos – incluindo dois australianos – do atentado ocorrido dias antes em Londres, os sauditas se aqueciam normalmente. As principais críticas foram por desrespeito às vítimas, até porque o argumento oficial de que o minuto de silêncio não seria uma prática na cultura muçulmana não convence quando se recupera imagens de equipes árabes respeitando homenagens semelhantes em outras partidas. Mas, claro, houve quem visse naquele gesto um apoio da seleção saudita ao atentado.

Opinião da Gazeta:Futebol, violência e impunidade (editorial de 25 de junho de 2017)

Do mesmo autor:  A militarização de um evento que celebra paz e união de povos (2 de agosto de 2016)

No fim das contas, fingir que a política não aparecerá no esporte é utópico. O máximo que entidades, clubes e atletas podem fazer é minimizar os danos quando esse efeito é negativo. Regulamentos podem proibir que atletas ou equipes de um país boicotem adversários de uma nação politicamente rival, sob o risco de sofrer punições severas como exclusão de competições por alguns anos. A organização do evento pode se preparar de forma especial em casos de possível confronto.

Mas o importante mesmo é que os competidores recebam orientação para saber lidar com casos mais delicados. Quando Irã e Estados Unidos se encontraram na Copa de 1998, o temor de hostilidade foi substituído pela agradável surpresa de troca de flores e uma foto conjunta das duas equipes antes do jogo. Quando a África do Sul sediou o Mundial de rugby, em 1995, Nelson Mandela tratou de fazer que os negros se sentissem representados por aquela seleção praticamente toda branca – e o título foi importante para melhorar o ambiente no país pós-apartheid. Afinal, a influência da política pode ser negativa no esporte, mas o esporte pode também ser usado como bom exemplo para a política.

Ubiratan Leal, jornalista, foi editor da Revista ESPN, do site Trivela e, atualmente, é comentarista dos canais ESPN e editor do site Nova Escola.
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