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O novo prefeito de Istambul Ekrem Imamoglu discursa para multidão.
O novo prefeito de Istambul Ekrem Imamoglu discursa para multidão.| Foto: Bulent Kilic/AFP

O candidato da oposição na eleição para prefeito de Istambul, Ekrem Imamoglu, derrotou, em 23 de junho, a escolha do presidente Recep Tayyip Erdogan e do Partido da Justiça e do Desenvolvimento, conquistando 54% dos votos, 806 mil a mais que o adversário. Foi a maior derrota de um partido da situação em quase duas décadas.

Imamoglu ganhou reorientando a Turquia para uma política que pode permitir a coexistência democrática; conquistou a vitória reconhecendo que a marginalização pode gerar poder político, coisa que todo populista entende bem. O que o torna único é que ele conseguiu isso diminuindo a polarização, e não a incentivando.

A Turquia realizou eleições municipais em março, em meio a uma recessão econômica, e o AKP de Erdogan perdeu em praticamente todas as grandes cidades, incluindo Ancara e Istambul, para o Partido Popular Republicano, ou CHP.

Erdogan e seu governo não conseguiram aceitar a derrota em Istanbul, fonte de imensa renda e prestígio, considerada o termômetro da política turca; por isso, o AKP apelou para o tribunal eleitoral federal, exigindo um novo pleito, alegando fraude, citando pequenas irregularidades nos registros dos eleitores e levantando dúvidas sobre as credenciais dos oficiais que supervisionaram as cabines de votação sem oferecer provas críveis ou explicações convincentes para suas reivindicações.

Uma eleição municipal não muda muita coisa na forma de governo da Turquia, mas o sentimento geral é de que Istambul virou a página

Porém a justiça eleitoral turca acatou o pedido e as novas eleições para Istambul foram marcadas para 23 de junho. O povo achou – provavelmente com razão – que Erdogan pressionou o órgão para que tomasse tal decisão, o que abalou não só a metade da população que não votou nele, como muitos de seus próprios correligionários. Os turcos não conseguiram aceitar o fato de o governo querer novas eleições depois de ter perdido.

O partido do presidente tentou compensar o mal-estar abandonando seu estilo característico de campanha, mais negativo, para tentar conquistar o eleitorado se concentrando em seu candidato, Binali Yildirim, que já foi primeiro-ministro e presidente do parlamento turco. Acontece que sua principal qualidade é a fidelidade cega a Erdogan e, durante a maior parte da campanha, a impressão que passava era a de que estava sendo forçado a concorrer. Pouco inspirado, parecia mal ter energia para sussurrar ao microfone.

Em um contraste gritante, Imamoglu, cheio de energia, conseguiu reunir várias facções da oposição: o CHP, ao qual pertence, o partido fundador da República; o Iyi, seu parceiro nacionalista; e o Partido Democrático, pró-curdos. Seus comícios pareciam uma verdadeira salada de símbolos políticos, com bandeiras do arco-íris, faixas pró-panturquismo, bandeiras partidárias, véus de cabeça e camisetas regata.

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Quando as pesquisas mostraram Imamoglu na liderança nos últimos dias de campanha, Erdogan perdeu a compostura, insinuando que o adversário estava de conluio com Fetullah Gulen, o clérigo islamita fugidio que já foi seu próprio aliado, a quem acusa de ser responsável pela tentativa de golpe de 2016 que matou 251 pessoas, na maioria civis, e feriu mais de 2 mil. "A retórica do candidato do CHP é baseada só em mentiras e taqiya", denunciou o presidente, referindo-se à estratégia de infiltração empregada por certas seitas islâmicas para atingir as instituições.

Erdogan e a parte da imprensa que lhe é fiel também acusaram Imamoglu de ter ligação com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, o PKK, que o país combate há mais de 30 anos. Ao mesmo tempo, porém, ele parece ter autorizado a publicação de uma carta escrita por Abdullah Ocalan, líder do PKK que está preso, que pedia aos eleitores de seu partido que "se mantivessem neutros", implicando basicamente que não votassem em Imamoglu. E as redes sociais não perdoaram Erdogan por seu aparente endosso à autoridade de Ocalan, geralmente descrito pela imprensa turca como "o inimigo público número um".

O presidente foi longe demais quando "roubou" a vitória de Imamoglu em março, forçando uma nova eleição. O AKP, que subiu ao poder no início dos anos 2000 como o partido dos muçulmanos fervorosos marginalizados pela elite secular, já não podia mais se beneficiar do status de azarão; duas décadas e meia no poder o transformaram no establishment turco – e, de quebra, roubou da oposição a vitória nas eleições.

O ressentimento dos opositores a Erdogan e seu aparente controle total sobre a política se revela nas conversas, quando fantasiam poder pôr os membros do AKP na cadeia, tirando dos baba-ovos os privilégios adquiridos e acertando as contas políticas. Qualquer campanha de oposição pede justiça, mas na Turquia temia-se que tal atitude descambasse para a vingança. Mine Kirikkanat, colunista e escritora da antiga elite secular, ultrapassou esse limite em um evento público realizado no ano passado, quando zombou da linguagem da marginalização islamita em questões como a antiga proibição nacional do uso do véu de cabeça nas universidades. "Quem são os espoliados agora? Nós! Faremos o mesmo com vocês. Com certeza, esse dia chegará", afirmou, prometendo converter o ressentimento em poder político.

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O vídeo desse desabafo se tornou viral entre um grupo de ressentidos da oposição secular, mas acabou beneficiando Erdogan e seus apoiadores, que o usaram para fomentar o medo do revanchismo. Uma conta pró-governo nas redes sociais compartilhou as imagens no dia da eleição, com a legenda: "Mostre isso para os que ainda estão confusos, temerosos, revoltados ou chateados. #InsallahBinali."

Mas até nos bairros de Fatih, Eyup e Uskudar, em Istambul, onde se encontra a facção muçulmana conservadora, a maioria dos votos foi para Imamoglu, que se esforçou para combater os impulsos revanchistas.

Antes do início da campanha, Imamoglu foi visitar Erdogan para mostrar ao público que reconhecia e respeitava sua autoridade. Concentrou a campanha nos bairros conservadores, foi quebrar o jejum com pessoas comuns durante o mês do Ramadã e fez pausas longas para ouvir a opinião dos eleitores do AKP. Ele fez o que Erdogan nunca realmente teve a possibilidade de fazer: assumir que podemos perdoar uns aos outros e viver com igualdade perante a lei. "Este não é um triunfo; é um recomeço", disse ele no discurso da vitória.

Uma eleição municipal não muda muita coisa na forma de governo da Turquia, mas o sentimento geral é de que Istambul virou a página, e que as duas metades do país poderão finalmente se voltar para um equilíbrio maior.

Selim Koru é analista da Fundação de Pesquisa de Política Econômica de Ancara e membro do Instituto de Pesquisa de Política Externa.

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