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A construção civil vive um paradoxo incômodo. Apesar da forte retomada de obras e investimentos, muitos canteiros estão parados não por falta de recursos, mas por escassez de mão de obra qualificada. No Brasil, a crise já é concreta: a FGV registra que 82% das empresas do setor relatam dificuldade para contratar profissionais especializados, como pedreiros, eletricistas e instaladores. Além disso, o custo da mão de obra subiu 69% em dez anos, segundo o Sinapi (Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil), um alerta claro de que a oferta tem sido insuficiente.
Esse problema, porém, não é exclusividade brasileira. Os Estados Unidos enfrentam um hiring crunch: carpinteiros, eletricistas, encanadores e instaladores de ar-condicionado são cada vez mais demandados e escassos. A consequência são atrasos de obras e aumento de custos. No entanto, programas de formação ajudam a construir um pipeline de profissionais mais bem preparados para atender essa demanda. Por lá existe uma resposta interessante e que pode servir como inspiração para o Brasil: a expansão das escolas de trades (profissões técnico-operacionais) voltadas para a construção.
A valorização da mão de obra especializada pode alterar uma percepção arraigada: a de que trabalhos braçais são menos prestigiados ou bem pagos
Organizações como a HBI (Home Builders Institute) oferecem programas gratuitos de pré-aprendizagem por até nove semanas, ensinando carpintaria, elétrica, leitura de plantas e segurança, entre outros conteúdos. Outras entidades, como o Grow the Trades (com apoio da Stanley Black & Decker), investem milhões para treinar novos profissionais e fortalecer a mão de obra especializada. Além disso, o sistema de Registered Apprenticeship (aprendizagem registrada) é robusto, com mais de 450 mil aprendizes no setor da construção, segundo dados oficiais.
Por que isso pode – e deve – chegar ao Brasil? Primeiro porque nosso problema é equivalente, senão mais grave. A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) e outras entidades já alertam para o risco de apagão de mão de obra. Segundo porque temos estrutura educacional que pode se adaptar: escolas técnicas como o SENAI, instituições públicas e privadas e até parcerias com o setor privado podem replicar o modelo de cursos curtos com prática e certificação.
A importância de oferecer formação estruturada e profissionalizante vai além de suprir a demanda imediata: ela eleva o padrão de qualidade do trabalho. Quando pedreiros, eletricistas ou instaladores de ar-condicionado passam por uma educação formal, com certificações reconhecidas, eles não só adquirem habilidades técnicas mais apuradas, mas, também, desenvolvem noções de segurança, leitura de projetos, uso correto de ferramentas e cumprimento de normas. Esses profissionais tendem a cometer menos erros, entregar mais rápido e gerar menos retrabalho, algo essencial para construtoras que precisam melhorar produtividade e eficiência.
Além disso, a valorização da mão de obra especializada pode alterar uma percepção arraigada: a de que trabalhos braçais são menos prestigiados ou bem pagos. Com especialização, esses profissionais podem aumentar seus rendimentos. Embora existam disparidades, a formalização e a certificação poderiam elevar a remuneração desses trabalhadores a patamares mais dignos.
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Outro ponto importante é a sustentabilidade da carreira. Um trabalhador especializado em construção e certificado tende a ter mais estabilidade e mobilidade: pode migrar entre empreiteiras, assumir funções mais complexas ou mesmo se tornar empreendedor no ramo técnico. Isso cria um círculo virtuoso: quanto mais valorizado for esse trabalhador, mais jovens poderão se interessar por essas ocupações técnicas, suprindo o déficit de longo prazo.
É claro que há desafios para que esse modelo de escolas técnicas especializadas decole no Brasil: financiamento, parcerias público-privadas, cultura de valorização das profissões manuais e burocracias regulatórias. Mas os sinais mostram que o setor já percebe a urgência. Um novo pacto social entre governo, empresas da construção e instituições de ensino poderia criar uma rede sólida para formação de profissionais técnicos.
Em resumo: a ideia de replicar nos canteiros brasileiros o modelo de escolas de trades americanas – pedreiros, eletricistas, instaladores de ar-condicionado bem treinados – não é apenas viável, mas estratégica. Trata-se de uma iniciativa capaz de mitigar a escassez de mão de obra, elevar a qualidade das obras, valorizar profissionais braçais e gerar carreiras sustentáveis e bem remuneradas. Se implementada com visão e compromisso, essa tendência pode transformar o setor da construção no Brasil, impulsionando inovação, produtividade e inclusão social.
Marcos Dantas é engenheiro eletricista, atual presidente do Clube de Engenharia e Arquitetura de Londrina (CEAL).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



