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A Páscoa é a mais importante data do calendário litúrgico cristão. Em perspec-tiva teológica, seu significado tem um alcance maior do que o Natal ou qualquer outra data, ainda que não encontre expressões tão glamourosas e acrescidas de tantas fantasias quanto os dias natalinos. Sob a luz da teologia cristã, a Páscoa é mais relevante até mesmo que a existência do mundo criado. Este passou a existir para que aquela tivesse história e lugar. Na paixão-morte-ressurreição de Jesus Cristo, Deus amou mais a humanidade que no momento da criação.

Neste quadro tão auspicioso, em um dia festivo como a Páscoa, qual é a razão de recordar uma frase tão forte, clamada em alta voz, em veemente expressão de dor e desespero por parte de Jesus? Esta é a única frase do Crucificado recolhida pelo evangelista Marcos. Jesus parece ter sido vencido pelos que queriam o seu fracasso. Até mesmo Deus o traíra. Nesse caso, nem Deus nem seu Filho seriam confiáveis. Todo o bem que Ele fizera, toda a esperança que suscitara, tudo o que ensinara se tornou solene impotência. E, se Jesus cai em descrédito, também Deus entra na mesma trilha. Teriam triunfado os falsos deuses.

Até mesmo nas horas desesperadoras Jesus se lembrara do Pai. O Crucificado não apenas enfatizou sua condição de abandonado. Ele ainda tinha a quem gritar

Quase sempre, quando nos deparamos com experiências religiosas, somos instigados, ou melhor, tentados a esperar que Deus aja desde fora da história, que com sua onipotência faça desencadear prodígios e milagres, como se fossem a melhor linguagem da força divina atuante. Todavia, com Jesus, Deus se envolveu na história e nas vicissitudes humanas em todas as suas consequências. A onipotência divina assumiu as vestes da fragilidade humana. Tudo o que é profundamente humano, inclusive a dor e o desespero, tudo isso Jesus experimentou. E, se não houvesse a Ressurreição, então a Páscoa não passaria de uma homenagem póstuma a um inocente derrotado.

Mas como interpretar clamor tão dramático como este do Crucificado? A escuridão e até mesmo o desespero fazem parte das experiências humanas. A frase clamada pelo Senhor na cruz não oculta esta pobreza. Todavia, o seu grito é uma referência ao Salmo 22. Trata-se de uma oração que mescla lamentação e esperança. Quando o evangelista reportou a dor do Crucificado mencionando um salmo que integra a pobreza humana, combinada com a esperança na força que vem de Deus (assim é o salmo), ele pretendia atestar aos seus leitores que até mesmo nas horas desesperadoras Jesus se lembrara do Pai. O Crucificado não apenas enfatizou sua condição de abandonado. Ele ainda tinha a quem gritar. E clamou: “Deus meu...”

Segue, pois, que o drama do sofrimento de Jesus na cruz não foi apenas lamento angustiado. Foi também oração. Sentiu-se abandonado, mas ainda assim dirigiu sua oração de clamor. O Salmo 22 é incomparável em suplicar a Deus que não abandone quem a Ele faz ressoar sua oração. É esta a única força de quem conheceu o extremo da pobreza humana. Foi esta a experiência de Jesus.

Nesta Páscoa, para quem crê que Jesus é, sim, o Filho de Deus – de um Deus amoroso –, celebrar a vitória sobre o sofrimento causado pela maldade não é apenas recordar realidades prodigiosas do passado. Não se trata de triunfalismos fantasmáticos. Antes de tudo, para quem crê, trata-se de conferir sentido até mesmo às próprias experiências pessoais de cruz. Quem sabe sofrer com fé será capaz de conhecer o modo de Jesus ser vitorioso. Até os tropeços nos ajudam a lembrar de Deus.

Dom José Antonio Peruzzo é arcebispo de Curitiba.
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