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No dia 4 de março, em plena segunda-feira de carnaval, o embaixador Paulo Roberto de Almeida foi demitido da direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais no Itamaraty. De acordo com o governo, o afastamento ocorreu “no contexto da grande troca das chefias do ministério”. Porém, segundo os artigos publicados na imprensa brasileira do dia, o ato se deveu à republicação em seu blog de três textos da autoria de Fernando Henrique Cardoso, Rubens Ricupero e Ernesto Araújo, o atual chanceler, que discutem a política brasileira sobre a crise na Venezuela. Em verdade, a demissão se deu por causas mais profundas, e o Brasil vai lamentar por isso.

Diplomata de carreira desde 1977, Paulo Roberto de Almeida está bastante ciente de que a estrutura hierarquizada do Itamaraty não tolera bem divergências: por suas opiniões liberais clássicas, durante toda a era PT, amargou certo ostracismo dos cargos decisórios. Seria de esperar que, num governo de direita, o embaixador se encontrasse mais à vontade. Todavia, desde o fim de 2017, ele se colocou em rota de colisão com as ideias “antiglobalistas” de Olavo de Carvalho, mentor intelectual do novo ministro Ernesto Araújo e pensador de grande influência no governo. Portanto, quando Almeida quis, em seu blog, “estimular o debate sobre a política externa brasileira” e publicar trabalhos críticos à política brasileira em relação à Venezuela, a sua oposição meramente intelectual assumiu cores de insubordinação para o chanceler.

Por tempo demais, Brasília simpatizou com Caracas e forçou a entrada da Venezuela no Mercosul

E quão diferente seria a política externa brasileira com um papel mais ativo de Paulo Roberto de Almeida? Perguntas que geram uma história alternativa são muito difíceis de responder. Ainda assim, pelo que o embaixador já fez e escreveu, é possível conceber um cenário de muita liberdade comercial, em que o Ministério das Relações Exteriores estaria mais afinado com o Ministério da Economia, a retomada do Mercosul na sua proposta original e a defesa de valores como o livre mercado, a democracia representativa e a dignidade do ser humano. Porém, a maior divergência entre Ernesto Araújo e o embaixador afastado reside na crença do primeiro de ameaças globalistas. Globalização e globalismo não são sinônimos. Um é processo mais ou menos espontâneo de unificação de mercados, com o enfraquecimento do poder do Estado nacional, e o outro um movimento consciente de formação de um governo mundial. Na realidade, poderia haver mais de um movimento globalista: o islâmico, o pós-moderno e o comunista. O que todos possuiriam em comum é a destruição dos valores ocidentais e do Ocidente, como um todo. A diferença prática entre as duas personalidades se faria sentir em relação a três desafios que o novo governo já teve de enfrentar em apenas dois meses: a crise da Venezuela, a questão das migrações e o Programa Mais Médicos.

A política externa dos anos PT tardou em denunciar a ditadura venezuelana por enxergar lá um projeto alternativo de democracia. Assim, por tempo demais, Brasília simpatizou com Caracas e forçou a entrada da Venezuela no Mercosul. Mas a atual crise humanitária por que passa a Venezuela e as denúncias de fraude eleitoral tornaram essa política insustentável. O Itamaraty reagiu de maneira enérgica: não reconheceu o governo Maduro, mas o governo do líder da oposição e permitiu, como o próprio chanceler afirma, a intervenção norte-americana no problema. Cumpre salientar que os Estados Unidos constituem uma peça-chave para a concepção antiglobalista de Ernesto Araújo. Por causa do tamanho da população, do poderio militar, da força econômica e, sobretudo, em razão dos valores cristãos que permeiam a sociedade americana, os EUA representariam o principal ator contra os movimentos globalistas. Desta feita, apoiar Washington contra governos de esquerda se revela essencial nessa lógica.

Opinião da Gazeta: O papel do Brasil na comunidade internacional (editorial de 9 de dezembro de 2018)

Leia também: Bolsonaro não foi eleito para manter o Brasil como ele o encontrou (artigo de Ernesto Araújo, publicado em 8 de janeiro de 2019)

Contudo, é possível que tenha havido entusiasmo demais nesse apoio. Os interesses dos EUA não coincidem tão perfeitamente com os do Brasil neste tema: desejam tanto retirar a influência russa na Venezuela que não estão tão preocupados com a estabilidade política do país e não fazem questão de uma saída diplomática para a crise. Mas estes não são os interesses do Brasil, que faz fronteira com a Venezuela e poderia aglutinar os países da América do Sul para uma grande negociação que previsse novas eleições. Agora, o grau de intervenção nos assuntos internos venezuelanos vai depender do quanto o governo Trump consegue convencer a sua opinião pública interna. Sanções econômicas por si sós não vão derrubar Maduro e apenas agravam a crise humanitária; portanto, sem o anteparo brasileiro, Washington pode tomar medidas bem mais intervenientes (inclusive uma intervenção militar). Liberais, como Paulo Roberto de Almeida, acreditam em diplomacia multilateral e não deixariam os EUA assumir um protagonismo nesta crise.

Visto que a noção de globalismo não é precisamente delimitada, algumas políticas brasileiras se mostram confusas. Trata-se do caso da nossa política externa em relação à migração. O Itamaraty não sabe que percurso tomar aqui. O governo saiu do Pacto Global de Migração da ONU por consistir num instrumento multilateral e, pois, fazer que as decisões sejam tomadas fora do Brasil, mas ele mesmo não elabora uma diretriz em relação ao tema. Para que o Pacto fosse contrário à política brasileira, precisaríamos ter uma. Por enquanto, só temos uma política externa contrária a tratados, o que é estranho.

Na realidade, o Brasil vive hoje uma situação singular na qual recebe muitos refugiados, mas, paradoxalmente, não é mais um país de imigração. Não podemos mais nos dar ao luxo de não termos uma política externa sobre este tema. Herdeiros de uma longa tradição kantiana do “direito de visita universal”, liberais devotam verdadeiros rios de tinta sobre o problema da migração e não mostrariam hesitação nesta matéria.

Leia também: Política externa, pragmatismo e valores (editorial de 4 de janeiro de 2019)

Leia também: A identidade de Bolsonaro (artigo de Gaudêncio Torquato, publicado em 17 de dezembro de 2018)

Por último, com a recente divulgação dos documentos secretos das negociações que possibilitaram a vinda dos médicos cubanos ao Brasil, hoje já se conhece as escandalosas condições desse acordo: a maior parte do salário dos médicos ficava com o governo de Cuba, que mantinha como refém as suas famílias e as impedia de emigrar, e a escolha do MRE em realizar o negócio por meio de um contrato com uma organização internacional, não um tratado, com o objetivo expresso de evitar o debate parlamentar sobre o assunto. Não é de se estranhar que uma das primeiras medidas do novo governo tenha sido a denúncia desse convênio. Mas foi só isso. Até o momento, o Itamaraty não fez qualquer mea culpa do episódio porque tudo acabou, já que não diz respeito a nenhuma ameaça globalista. Este silêncio, todavia, mostra-se ensurdecedor. Liberais sabem que o Brasil patrocinou verdadeiro tráfico internacional de pessoas e tentou encobrir isso sob um manto de legalidade perante o direito internacional. Sob a batuta de uma chancelaria liberal, apurar-se-ia a responsabilidade dos culpados.

Em 13 de dezembro de 2017, Paulo Roberto de Almeida, num debate online com Olavo de Carvalho, chamou as ideias antiglobalistas de “fantasmagóricas”. Contudo, já no seu discurso de posse, Ernesto Araújo afirmou que não “trabalharia para a ordem global” e que a política externa brasileira de antes “estava presa fora do Brasil”. Tal como nos anos petistas, o embaixador liberal bem como os valores liberais estariam novamente em descompasso com os seus superiores.

Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo, advogado, pós-doutor em Direito, professor e vice-coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da UERJ.
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