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Por que o debate público está cada vez mais frágil e intolerante

(Foto: Aline Menezes com Chat GPT)

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Foi num desses eventos em que a literatura se mistura com a vida que um episódio aparentemente banal revelou uma tensão essencial do nosso tempo. O evento foi o “Sempre Um Papo” realizado pela Caixa Cultural de Brasília. Um encontro entre leitores e o escritor Itamar Vieira Júnior (autor dos premiados “Torto Arado” e “Salvar o fogo”), um dos mais potentes nomes da ficção brasileira contemporânea, terminou com uma pergunta singela: “Com qual escritor você tomaria um café?”

A resposta veio com honestidade e ironia. Itamar hesitou, confessou temer escritores, pois ouve falar muito “quando eu conheci fulano eu fiquei decepcionado", apontando o abismo que às vezes separa a obra do autor. 

E, como quem solta um nó contido no silêncio, disparou: “A gente perdeu recentemente o Vargas Llosa. Eu acho inegável… que não se fale… que era um escritor maravilhoso, com uma obra monumental. Mas imagine sentar com Vargas Llosa para tomar um café, ele com aquele pensamento liberal. Até, né? Num… é impossível”. Mexeu-se na poltrona ao falar isso (será que Freud identificaria algum incômodo?) e foi aplaudido pela quase totalidade da platéia entre risos. O que há num café? E o que se perde quando não se toma um?

O comentário de Itamar, embora feito em tom leve, é sintomático de algo mais profundo: a erosão da confiança mútua no espaço público de ideias. Porque, ao dizer que não tomaria um café com Vargas Llosa (não por seus atos, mas por suas ideias!), ele nos convida a refletir sobre o estado atual do dissenso: estamos perdendo a disposição para escutar quem pensa diferente?

É aqui que a comparação se impõe, e com ela, a ironia histórica.

Mario Vargas Llosa, ao longo de sua trajetória, rompeu com a esquerda revolucionária não por cinismo, mas por convicção. Denunciou o autoritarismo de Fidel, o populismo de Chávez e a corrupção de Ortega. Foi acusado de elitismo, eurocentrismo e liberalismo burguês. 

Ainda assim, manteve uma postura pública firme: aceitaria conversar com qualquer um, até com um comunista, desde que esse encontro ocorresse no terreno da razão, da liberdade e do respeito mútuo. Declaração do próprio peruano e Nobel de Literatura de 2010.

Vargas Llosa acreditava que o debate público é feito com ideias, não com afinidades. Itamar, ao contrário, parece nos dizer que certas divergências são intransponíveis, e que há cafés que não se podem tomar

Contudo, há uma reparação fundamental que se impõe; e é aqui que a filosofia deve agir com precisão cirúrgica. Quando Itamar menciona que não tomaria café com Llosa por conta de seu liberalismo, ele o faz presumivelmente tendo em mente uma forma específica, restrita e reducionista de liberalismo, aquela que identifica o liberalismo à defesa pura do livre mercado, à desregulação irrestrita e à indiferença diante das desigualdades históricas.

Esse equívoco é compreensível, mas precisa ser desfeito com o rigor do conceito. O que muitos chamam de ‘liberalismo’ no senso comum é, na verdade, liberismo. Esse é o termo técnico que designa a doutrina econômica de laissez-faire absoluto, associada a Frédéric Bastiat, à tradição italiana de Luigi Einaudi, e à vertente mais estritamente antiestatal da ortodoxia econômica do século XIX.

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O liberalismo verdadeiro, fundado por Locke, Smith, Tocqueville, e renovado por Hayek, Berlin, Aron, Popper, Rawls e Sen, é muito mais amplo e rico. Ele não é uma apologia do mercado, mas uma doutrina política que tem como valor supremo a liberdade individual, limitada pelo respeito ao outro, protegida por instituições e sustentada por um ordenamento jurídico que restringe a concentração arbitrária de poder, seja econômico, seja estatal.

Dessa forma, as mazelas que Itamar, com razão, denuncia em sua obra e em sua atuação pública (desigualdade, exclusão racial, violência fundiária, pobreza estrutural) não são produtos do liberalismo, mas de sua ausência. São frutos de estruturas de poder concentrado, de estamentos patrimonialistas, de privilégios corporativos, de conluios entre elites políticas e econômicas, tudo aquilo que o verdadeiro liberalismo clássico, desde sua gênese, combateu vigorosamente.

Como defendeu Hayek, a verdadeira escolha não é entre intervenção e mercado, mas entre liberdade e coerção. A liberdade exige instituições. Bom momento para recordar também Isaiah Berlin: o inimigo da liberdade não é o dissenso, mas o dogma. O ponto essencial de Berlin é que a liberdade floresce no pluralismo, e que a supressão do dissenso, por meio de dogmas morais ou políticos, é justamente o que destrói o espaço da liberdade.

Vale lembrar que Vargas Llosa não apenas escreveu romances consagrados, mas também formulou seu pensamento liberal com clareza e elegância em obras como “O chamado da trino” (uma defesa aberta dos pilares liberais: Popper, Berlin, Aron, Hayek, Ortega) e “A civilização do espectáculo” (em que analisa a crise cultural do Ocidente sob o prisma do esvaziamento dos valores republicanos). 

Não foi apenas um ficcionista (em todos os gêneros) multipremiado, mas um pensador com uma obra bem fundamentada, com ampla recepção e forte reconhecimento. 

Aqui cabe uma gentil observação: se Itamar Vieira Júnior admite que a obra de Vargas Llosa é “monumental” e ele um escritor “maravilhoso”, não pode senão admitir que esses dois livros, os quais são veículos diretos de seu pensamento liberal, também o são. 

Se são, então talvez as ideias contidas neles não sejam assim tão descartáveis. A não ser, é claro, que a excelência de um livro dependa da concordância prévia com seu conteúdo (o que, convenhamos, seria uma redução perigosa da literatura a panfletos).

Portanto, se Itamar rejeita o café com Vargas Llosa por considerá-lo porta-voz de um modelo que causa opressão, ele o faz a partir de uma leitura reducionista (talvez até legítima em um universo político saturado de caricaturas ideológicas, mas que qualquer intelectual minimamente bem-talhado deveria superar). 

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Contudo, o que Vargas Llosa defende não é o mercadismo indiferente: é a liberdade sob responsabilidade, o indivíduo autônomo sob instituições que limitam o arbítrio, inclusive o econômico.

Aqui reside o ponto: as ações humanas que produziram injustiça e violência (colonialismo, racismo, exploração), não foram ações liberais, mas expressões de poder concentrado, elitista e autoritário. São, por definição, antiliberais

Este episódio, mínimo e revelador, não é sobre café. É sobre o que estamos dispostos a preservar no convívio entre ideias: a disposição ao dissenso respeitoso, o compromisso com a liberdade (não como slogan, mas como princípio organizador da convivência civil). 

Talvez, no fim, a pergunta mais urgente não seja “com quem você tomaria um café?”, mas sim: você está disposto a reconhecer que a liberdade de quem pensa diferente é também o que protege a sua?

Se Vargas Llosa convidasse Itamar para esse café, o faria com uma xícara de liberdade na mão. Se Itamar aceitasse, talvez descobrisse que há mais pontos de contato entre a liberdade que ele defende e o liberalismo que ele recusa do que, à primeira vista, ele parece entender.

Marcos Pena Júnior é economista, filósofo e escritor; pesquisador do Núcleo de Filosofia Política do LABÔ da PUC-SP; autor de “Do riso às lágrimas: poemas contra ressentimentos” (2021) e “Visagens nossas de cada dia: uma história da Independência” (2022).

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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