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Depois de certa idade, o Natal pode chegar carregado de sombras. Agora já me acostumei à forma como os fantasmas de Natais Antigos vêm me espiar, mas ainda é difícil. Tenho saudade dos meus pais. Lamento as amizades rompidas. E me preocupo com a velhice chegando, o destino do planeta e a presidência desse homem abjeto.

Por causa de tudo isso, lá estava eu, outro dia, logo cedinho, sentada perto da lareira da minha casa, no Maine, chorando. Aí meu labrador de 13 anos, Ranger, se aproximou e pôs seu focinho grisalho no meu colo, o rabo fazendo barulho ao bater no chão. Ele parecia dizer: “Ei, você se lembra das coisas boas... como essa?”

E quando me concentro nas coisas boas penso, acima de tudo, em estar à mesa com a minha família.

Eu poderia falar da nossa tradição do jantar da véspera de Natal que, desde que moramos no Maine, se concretiza em uma travessa de lagostas fumegantes, dispostas sobre uma cama de galhos recém-cortados. Eu sei que é Martha Stewart demais, mas caprichamos mesmo assim, principalmente por ter sido minha irmã quem deu a sugestão, há 20 anos, e todo mundo ter aprovado.

É a mesma irmã com quem eu brigaria anos depois. Ficamos sem nos falar um tempão. Agora, com muito cuidado e gentileza, timidamente, estamos tentando voltar à vida uma da outra. Feliz Natal, irmã minha. Eu te amo.

Quando me concentro nas coisas boas penso, acima de tudo, em estar à mesa com a minha família

Da mesma forma, poderia contar do jantar do dia de Natal – que, com alguma sorte, é bife, batatas assadas duas vezes e um borgonha francês encorpado. Foi minha avó, a exuberante Gammie, quem começou essa tradição. Já faz 28 anos que ela e sua companhia constante, Hilda, não estão mais por aqui.

Foi ela também quem decidiu que, ao morrer, queria ter o corpo doado à ciência. Dizia: “depois que morreu, já era.” E conseguiu convencer Hilda a fazer o mesmo. Foi uma das muitas coisas que fizeram juntas.

Mas, quando estavam vivas, sua refeição natalina favorita, assim como a minha, era o café da manhã.

Depois que o último presente é aberto, vou quietinha para a cozinha e encarno o espírito de uma verdadeira chef: faço ovos mexidos e hash browns – gosto de usar batata vermelha, misturada com bastante azeite, sal kosher e hortelã picada. E tem também uma travessa de bacon defumado no bordo, presunto Smithfield, linguiça toscana.

E, porque eu sou da Pensilvânia, nascida pertinho da região dos amish, vai ter também “scrapple”. Se você não sabe o que é, não tem motivo para eu estragar seu momento pré-natalino com muitos detalhes; digamos apenas que leva certos “subprodutos” do porco, misturados com farinha, resultando em um tipo de bolo, que é cortado em fatias e frito na frigideira de ferro. Ah, não faça essa cara. Se eu preparar, aposto que você vai gostar.

Da mesma autora: Meu filme de Natal favorito (17 de dezembro de 2017)

Leia também: O que temos ensinado a nossos filhos sobre o Natal? (artigo de José Carlos Pereira, publicado em 24 de dezembro de 2016)

Tem suco de laranja feito na hora, sidra e café bem quentinho.

Agora que nosso filho, Sean, e nossa filha, Zai, estão com 20 e poucos anos, é bem provável que eu e minha mulher sejamos as primeiras a levantar. Deedie vai montar um quebra-cabeças na frente da lareira. Tão diferente do que era lá pelos idos dos anos 90, quando as crianças nos acordavam às 5, pulando na cama.

Sinto saudade daquele tempo, mas hoje os dias são bons também.

Quando eu era adolescente, odiava ficar ao redor da árvore com minha família. Lá estavam meus pais, falando de Gerald Ford como se ele fosse São João Batista; minha avó, tirando a prótese de látex que tinha no seio, sacudindo na cara de todo mundo e dizendo: “olhem só, o milagre da ciência!” Nessa hora, a tia Gertrude começava a contar – de novo – a história do Natal na Prússia Oriental, em 1920: a família dela, pobrinha, enfrentando uma nevasca em um trenó puxado por um cavalo, seu avô com as rédeas na mão. Iam passar o Natal na propriedade dele, na periferia de Konigsberg. Da floresta saiu o uivo dos lobos; as seis crianças se encolheram ainda mais sob o cobertor.

Depois de certa idade, o Natal pode chegar carregado de sombras

Nessa hora, eu me refugiava na cozinha. Ali, sozinha, ouvia a WXPN da Filadélfia, preparando o café da manhã gigante. A casa se enchia do aroma do bacon, das batatas e das cebolas. Eu gostava de cozinhar para minha família, gostava de alimentá-la; só não aguentava ficar perto do pessoal.

Que saudade sinto hoje daquelas pessoas ridículas. Como eu as amava! E o que eu não daria para lhes preparar o café da manhã pelo menos em mais um Natal.

Mas talvez minha avó tivesse razão: depois que morreu, já era. E eu seria realmente muito mesquinha se me fizesse tão cega pelo que já perdi a ponto de não ver o que há bem na minha frente.

Na manhã do dia de Natal, minha família se reunirá ao redor da mesa para o café da manhã: Sean, Deedie, Zai e eu. Comeremos ovos, bacon, hash browns e “scrapple” – e, com a graça de Deus, teremos um ao outro. Ranger vai olhar para mim com aquela carinha canina dele. “O que eu disse? Lembre-se das coisas boas. Como essa.”

Jennifer Finney Boylan é professora de Inglês da Barnard College e autora de “Long Black Veil”
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