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Bastou o nome do novo papa, Leão XIV, ser anunciado oficialmente para que alguns trolls evangélicos na internet começassem a especular sobre o final dos tempos e o papel do papa, afirmando ou até personificando o Anticristo. Essa trolagem dos católicos não surpreende ninguém, já que é parte da identidade evangélica no Brasil. Tendo sido evangélica por muitos anos, percebo que a identidade evangélica, seja nas igrejas mais convencionais ou nas mais liberais, se afirma mais na sua oposição ao Catolicismo do que em valores peculiares a elas.
Esse fenômeno poderia até ser entendido como uma reação natural. Nas primeiras décadas da chegada das várias representações evangélicas – o que inclui os protestantes tradicionais – houve muito antagonismo da parte dos católicos. A nova religião procurava um espaço de expansão entre uma população já extremamente religiosa, e a convivência nem sempre foi amistosa. Toda denominação evangélica tem histórias de perseguição de católicos e até de embates físicos. É compreensível que todo evangelismo e discipulado na nova religião tivessem que necessariamente incluir um “detox” da religião antiga. Mas, mesmo depois que os evangélicos se tornaram uma porção significativa da população – mais de 22%, de acordo com o censo de 2010, sendo 60% pentecostais – o anticatolicismo ainda prevalece como a principal característica de alguns grupos.
Só existe um problema. A oposição à Igreja Católica é um pacto suicida para a igreja evangélica. Explico. O protestantismo começou oficialmente com a Reforma de Lutero, e, para quem não sabe, Lutero era católico – assim como todas as expressões cristãs até o século XVI. A história aconteceu mais ou menos assim: em outubro de 1517, um monge obscuro, que era professor e não pastor da paróquia, prega na porta de uma universidade recém-estabelecida – portanto também obscura – Wittenberg, na Saxônia, uma lista de teses clamando por reforma na Igreja Católica. Padre Lutero (seu título, de acordo com a tradição) não estava só em seu descontentamento com o estado da Igreja naquele momento. Muitos movimentos articulavam lamentos e oposição à corrupção e devassidão que se via nos altos escalões da instituição, sua falta de conexão com a miséria do povo, a cobrança das altas indulgências etc.
Mais do que nunca, hoje nós, os evangélicos, precisamos de uma Igreja Católica forte e viva, que mantenha a unhas e dentes sua ortodoxia cristã. Os católicos são nossa linha de contato com a história da Bíblia que veneramos, com a tradição teológica que observamos e com os símbolos culturais que ainda nos mantêm vivos e relevantes
Nada nessa rebelião generalizada era anticristã. Pelo contrário, sempre foi uma característica ontológica da Igreja a noção de que somos falhos, e todas as representações humanas do divino também serão falhas, portanto sujeitas a críticas e necessitadas de arrependimento e reformas contínuas. Era essa a intenção do monge Martinho Lutero: exortar os teólogos e párocos à mudança. Suas teses foram escritas em linguagem acadêmica e, portanto, dirigidas à própria elite governante da Igreja Católica, que até então era apenas Ecclesia Catholica. Como disse o historiador Carlos Eire, em seu livro Reformas: O mundo pré-moderno, 1450 a 1650, a reforma proposta pelo Padre Lutero não era pra ter tido tanta repercussão.
Pois é, depois da controvérsia começada pelo então Padre Lutero, nada foi o mesmo no cenário do Cristianismo. Não é o propósito deste artigo tentar articular os prós e contras da Reforma ou das muitas reformas que se seguiram ao ato do reformador. Quero chamar atenção para nossa origem comum, coisa que é facilmente esquecida pelos protestantes. Não existem dois cristianismos, dois Jesus históricos, duas igrejas originárias.
Eu sei que isso vai doer nos ouvidos de muitos evangélicos, mas o Cristianismo mundial só tem uma origem histórica, e ela é incorporada na tradição da Igreja que se chama hoje Católica Romana. São os católicos que conservam as relíquias dos primeiros séculos; são eles que protagonizaram as lutas existenciais que a Igreja travou – sejam físicas ou intelectuais; são católicos os teólogos-raiz da Igreja primitiva e medieval que ainda hoje enchem de substância e solidez a nossa frágil ortodoxia evangélica.
O que seria da tradição evangélica sem Santo Agostinho, por exemplo? Como iríamos articular a ideia da salvação individual, do mal que nos causa o pecado, da diferença entre o reino celestial e o reino terrestre? Que tipo de moral podemos entender e promover fora da moldura cognitiva fornecida por São Tomás de Aquino? Aliás, o afastamento de Aquino nos levou, sim, a um evangelicalismo crivado de comportamentalismo – ou seja, regras de comportamento – e sem ensino profundo do que seja a verdadeira virtude.
Muitos evangélicos também se voltam contra o simbolismo católico. Alguns chegam ao absurdo de rejeitar até a cruz como sendo um símbolo legítimo. Preferem o peixe, a sigla WWJD e outras bobagens sem a força histórica que a cruz representa. Sentem-se justificados porque aderem ao radicalismo de Calvino, que abominava símbolos físicos de qualquer espécie. Vale lembrar que o reformador João Calvino (Jean Cauvin), assim como Lutero, nasceu e cresceu católico. Não chegou a ser ordenado, porque seu pai lhe pediu que deixasse a ordem para se tornar homem da lei. Mas toda a educação do jovem Cauvin foi feita dentro da Igreja que ele mais tarde veio a combater. Não só isso, mas se beneficiou, durante o início de seu ministério, da corrupção e dos privilégios que a classe eclesiástica católica gozava na França.
Aos 12 anos de idade, sem estar ordenado padre ainda, ganhou uma posição de capelão na catedral de Noyon, por influência de seu pai, que era um administrador leigo trabalhando para o bispo de Noyon. Mais tarde, aos 18 anos, seu pai trocou esse benefício por outra posição de cura “fantasma” numa vila perto de Noyon, Marteville. Eire comenta que alguns autores alegam que foi justiça poética o fato de que essa aparente corrupção da elite católica, lhe pagando salários que não merecia, tenha financiado toda a educação clássica do jovem Calvino, que lhe permitiu, mais tarde, formular sua copiosa teologia reformada. Na verdade, essa era uma forma de financiar os estudos de alunos promissores, bem aceita na época.
A aversão de Calvino às imagens incluía o Catolicismo medieval no qual ele foi criado, tendo deixado por escrito condenações pesadas contra a paróquia onde cresceu. Segundo Calvino, a prova de que os devotos eram idólatras era que todas as estátuas da Catedral de Noyon – inclusive as que retratavam demônios e algozes atormentando os santos – recebiam guirlandas de flores frescas doadas pelos crentes. Ora, diz Carlos Eire, esse é mais um parecer antropológico do que teológico, porque não é possível provar o que as guirlandas significavam para os devotos. Concordo com o historiador.
Infelizmente, o julgamento subjetivo de Calvino inspirou toda a iconoclastia de sua teologia, que, além de tudo, foi muito conveniente como justificação bíblica da separação das duas igrejas. Ou seja, a iconoclastia é uma teologia de inspiração política mais do que uma defesa filosófica ou teológica de uma posição biblicamente consistente. Calvino sabia, como estudioso da teologia católica, que a Igreja nunca afirmou a adoração das imagens. Os ícones são permitidos como uma lembrança das histórias e personagens bíblicos, e não como um ídolo em si. Mas o francês precisava de uma linha que separasse, de uma vez por todas, os novos devotos da religião antiga. A sua teologia, cuidadosamente articulada, racional, lógica, brilhante e ampla, peca muitas vezes pela excessiva frieza racionalista.
Seres humanos são imperfeitos e vão sempre interpretar as coisas divinas – essas sim, perfeitas – de maneira imperfeita. Por isso, precisamos da linguagem simbólica, onipresente na comunicação humana. Usamos símbolos para tudo; palavras são símbolos sonoros. Principalmente, nosso discurso teológico é quase que estritamente metafórico, quando se refere a Deus e às coisas relativas ao sagrado. Calvino, pressionado pelas perseguições e de olho nas mudanças que queria gerar, constrói uma teologia baseada em certezas e direções claras para a vida prática e política do devoto. Essa teologia não tem espaço para linguagem apofática, que envolva Deus em mistério.
Ao contrário de São Tomás de Aquino, que considerava a analogia um artefato discursivo essencial para descrever o sagrado, Calvino acreditava que não há analogia possível para descrever o inefável – apenas o balbucio divino, aquilo que vem diretamente d’Ele através das palavras da Bíblia, pode servir de referência. Ele afirma apenas analogia fidei, ou seja, a revelação só pode ser entendida dentro dos limites da Bíblia. Ou seja, a distância imensa entre Deus e a criatura só se traduz na revelação bíblica – e essa, em comandos diretos para o crente.
Por isso, para Calvino, uma igreja sem imagem alguma, de preferência pintada de branco, livre de qualquer interferência simbólica, é a melhor expressão de uma “casa de Deus”. A revelação chega aos fiéis apenas através da pregação expositiva da Palavra de Deus. De certa forma, a proposta teológica calvinista antecipa a atitude epistemológica de algumas correntes da filosofia moderna. Tanto para Calvino quanto para os filósofos analíticos, por exemplo, a verdade pode ser construída através da lógica verbal – lógica bíblica, no caso de Calvino, afastada da falibilidade da experiência humana. Esse desejo de construir a verdade teológica para a nova Igreja transparece na maneira como Calvino viveu. Muito doente, fraco, Calvino escreveu até o último dia de sua vida – desesperada e intensamente – com o afã que mais tarde foi descrito por Weber como a “ética de trabalho protestante”, e ultrapassou todos os outros reformadores, inclusive Lutero, em influência.
Pode-se argumentar que, apesar dessa escolha cultural e política de manter a igreja completamente limpa de símbolos visuais, isso não reflete um conflito teológico com os católicos. Teologicamente, as duas correntes da igreja, a reformada e a católica, têm uma leitura equivalente da proibição à idolatria. Não existe outro Deus além do Senhor e nenhuma outra intermediação salvífica a não ser Cristo, tanto para católicos quanto para protestantes. Como essa doutrina se processa na prática é talvez uma questão cultural. Erros? Temos todos, tanto nós quanto eles.
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Voltando aos dias de hoje, a hostilidade anticristã se revela atrás de muitas bandeiras. O cientificismo quer substituir a religião como parâmetro para o estabelecimento do que é ético e verdadeiro. O multiculturalismo quer diminuir a importância do cristianismo na sociedade ocidental, equiparando-o a todas as outras religiões, eliminando, portanto, sua voz na construção do ethos do Ocidente. Os símbolos cristãos milenares são profanados, barbarizados e deturpados por todos aqueles que se levantam contra a verdade cristã.
E, pior do que tudo, muitas versões da teologia cristã se amalgamaram a teorias sociais, se curvando a elas, concedendo espaço no próprio âmago da fé a “fogos estranhos”, ou seja, noções humanistas que contêm articulações morais contrárias aos princípios do evangelho. Assim como algumas vertentes católicas, também igrejas evangélicas e protestantes foram contaminadas por falsas doutrinas. Não é difícil hoje encontrar cristãos que defendam a união homossexual, o aborto, o divórcio – e não será difícil encontrar, em alguns anos, os que defendam também, em nome da fé, os saltos transumanistas que a sociedade ocidental se prepara para dar.
Logo no começo de seu papado, Francisco foi visitar a Bolívia e recebeu do então ditador em exercício, Evo Morales, um crucifixo entalhado junto com o símbolo do comunismo: o martelo e a foice. A cara do Santo Padre foi de estranheza. Apesar de sua inclinação à Teologia da Libertação – teologia marxista que substituiu a ortodoxia tradicional na Igreja Católica da América Latina – Francisco entendeu que a combinação de dois símbolos antagônicos – a cruz, que aponta para o amor sacrificial de Cristo, e o martelo e a foice, que apontam para a ideologia política da dominação forçada, poder e violência revolucionária – era uma combinação anátema. A violência ideológica do marxismo iria conspurcar a pureza da fé cristã. Ele comentou, na época: “Nunca colocaria esse símbolo no altar de uma igreja...”
O papa sabia que, apesar de sua preferência política, ele não representava a si mesmo, mas representava 21 séculos de história cristã. O peso dessa constatação nossos pastores evangélicos que insistem em “atualizar” a Bíblia nunca terão. Mais do que nunca, hoje nós, os evangélicos, precisamos de uma Igreja Católica forte e viva, que mantenha a unhas e dentes sua ortodoxia cristã. Os católicos são nossa linha de contato com a história da Bíblia que veneramos, com a tradição teológica que observamos e com os símbolos culturais que ainda nos mantêm vivos e relevantes numa sociedade cada vez mais no caminho da autodestruição.
“Senhor Jesus, tenha misericórdia de nosso mundo e guarde o Papa Leão XIV na fé, no amor do Senhor e na sã doutrina. Para o bem de todos nós. Amém.”
Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutora em História e Teologia Política pela University of St. Andrews (Escócia).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



