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| Foto: Jim Watson/AFP

Após a Segunda Guerra Mundial, as relações de poder em nível internacional sofrem uma profunda transformação com a ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica diante do mundo capitalista, enquanto a União Soviética ocupa a mesma posição perante o mundo socialista, criando a existência de polos políticos e econômicos que se contrapõem e dividem o mundo em blocos distintos – a chamada bipolaridade.

Tal sistema perdurou por décadas e teve grandes consequências em termos econômicos, com a chamada “época de ouro”, período marcado por um intenso crescimento econômico mundial e de restabelecimento dos fluxos de capitais privados interrompidos durante as grandes guerras; e políticos, com a Guerra Fria, a constante tensão sem conflito entre as duas grandes potências mundiais, entre outros relevantes fatos que marcaram nossa história.

Na década de 90, ocorre uma nova transformação nas relações de poder, provocada pelo desmantelamento da União Soviética e simbolizada pela queda do Muro de Berlim, o que, simultaneamente, decreta o fim do sistema bipolar com a derrocada do modelo socialista e determina a posição absoluta dos Estados Unidos como única potência econômica e política do planeta.

Durante esse período, assistimos a uma intensificação do processo de globalização, caracterizada especialmente pelo fortalecimento dos processos de integração regional, com a instituição da moeda única na Europa e o surgimento de novos organismos como o Nafta e o Mercosul, destinados a facilitar as relações de comércio no âmbito internacional e promover a liberalização econômica em termos mundiais, seguindo a cartilha imposta pelo Consenso de Washington.

Estamos diante de uma reconfiguração profunda das relações de poder no âmbito internacional

Posteriormente, o século 21 é inaugurado com uma extrema interdependência e hipercomplexidade que afeta todos os setores da vida humana: o agravamento das questões ambientais, sobretudo com os problemas gerados pela mudança climática; o encurtamento de distâncias, com o impacto das novas tecnologias de informação e comunicação e do avanço da internet; a “deslocalização” do capital, que incrementa as desigualdades no planeta e coloca em risco os sistemas de proteção social até então existentes; e, finalmente, uma crise econômica e política que, uma vez mais, afeta a ordem mundial.

Assim, o fluxo de comércio internacional que passa a envolver novos e diversificados atores, fortalecendo os vínculos de cooperação sul-sul, juntamente com a forte crise econômica provocada pela ausência de regulação de mercados e que atinge com grande impacto Estados Unidos e Europa, determinam uma nova configuração das relações de poder no contexto internacional: a multipolaridade.

Na nova ordem multipolar encontramos, então, uma série de atores emergentes que passam a influenciar e exigir seu espaço no âmbito político e econômico internacional. Instituições como ONU, FMI e Banco Mundial são os grandes alvos dos novos players, que têm como protagonista a reemergente China.

Não é novidade que o “dragão asiático”, após anos de isolamento com o regime de Mao Tse-Tung, a partir de seu processo de reintegração ao mercado mundial, modernização e abertura econômica com Deng Xiaoping, passou a experimentar taxas médias anuais de crescimento em 10% por aproximadamente 30 anos – tanto que, em 2014, torna-se a primeira potência econômica mundial, superando os Estados Unidos, o que lhe possibilitou uma considerável inserção internacional por meio de uma política de investimento em países desenvolvidos e subdesenvolvidos que contribuíssem para a satisfação de sua “fome” de matérias-primas.

Certamente, a ocupação de espaços econômicos no âmbito internacional porta consequências políticas e a China se preparou para atuar nesse jogo, com iniciativas como os Brics, o Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento (AIIB), o sonho chinês da nova rota da seda com a “One Belt, One Road” (Obor) e a Parceria Regional Econômica Ampla (RCEP), as quais se apresentam como importantes peças no xadrez geopolítico.

Paralelamente, durante o governo Barack Obama, os Estados Unidos buscam alternativas para reafirmar sua hegemonia política e recuperar a econômica no âmbito internacional, e começam a desenvolver uma estratégia de negociação de grandes acordos multilaterais com aliados históricos como forma de responder ao avanço chinês. Esses acordos foram considerados por Obama como o “marco comercial do século 21”, na medida em que geram espaços econômicos com ampla repercussão geográfica, conectando mercados em diferentes regiões e determinando agendas que superam os temas tratados pelos simples acordos de livre comércio entre nações, ao estabelecer marcos regulatórios convergentes sobre fatores direta e indiretamente vinculados a matérias comerciais, como, por exemplo, regulações ambientais e trabalhistas.

A concretização da mencionada estratégia yankee se dá com a assinatura do Acordo de Associação Transpacífico (ou TPP, sigla em inglês), em 5 de outubro de 2015, o qual prevê a eliminação de barreiras alfandegárias e não alfandegárias entre 12 países pertencentes à região Ásia-Pacífico (além de Estados Unidos, Japão, Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura e Vietnã), que representam 11% da população mundial, 38% do PIB e 23% das exportações mundiais. Além do TPP, Barack Obama consolida o processo de negociações para fechar outro mega-acordo, o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento entre União Europeia e Estados Unidos (TTIP, sigla em inglês), o qual, embora muito contestado por diversos setores sociais, conectaria o país a um importante parceiro comercial e político, reduzindo ainda mais o espaço aberto pela China no Velho Continente.

Ocorre que o caminho lógico que deveria ser seguido nessa disputa de poder sofre um inesperado golpe “doméstico”, com o êxito de Donald Trump na eleição presidencial de 2016 e sua proposta protecionista de “America First”. Entre as primeiras e impactantes medidas do 45.º presidente norte-americano encontramos a retirada do país do TPP, dando cumprimento a suas promessas de campanha e, ao mesmo tempo, eliminando a estratégia de política exterior traçada por Barack Obama – além, é claro, de colocar o mundo em um oceano de incertezas sobre quais serão os próximos passos de seu governo.

Por um lado, entre as consequências certas e imediatas do ato de Trump estão a retirada do Chile, as dúvidas do Japão quanto à sua permanência e a luta do governo canadense para manter a existência do TPP, isso sem contar o receio do México quanto à permanência do Nafta. Por outro lado, surge uma série de especulações sobre a configuração dessa “pós-nova ordem mundial”, a qual demonstra que os Estados Unidos fecharão cada vez mais suas portas ao multilateralismo, abrindo espaço para que a China conquiste a liderança total no âmbito internacional.

É muito cedo para manifestar qualquer prognóstico exato sobre o assunto, uma vez que a Doutrina Trump está apenas começando, existindo ainda uma série de importantes situações – como as relações com Cuba, Israel e Rússia; o problema da imigração e o famoso muro na fronteira com o México; e a retirada dos Estados Unidos dos Acordos de Paris – que necessitam ser tratadas pelo governo Trump para uma melhor visualização sobre o futuro de nosso planeta. Em todo esse panorama, uma coisa é certa: estamos diante de uma reconfiguração profunda das relações de poder no âmbito internacional e do fim do mundo da forma como o conhecemos.

Ernani Contipelli, pós-doutor em Política Comparada pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), é diretor do Center for European Strategic Research (Itália) e professor do Programa de Mestrado em Direito da Unochapecó.
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