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Prender pessoas apenas por saírem à rua? Isso é ilegal!
| Foto: Arquivo Gazeta do Povo

Foi divulgado recentemente que o governador de São Paulo, João Doria, ameaçou prender os indivíduos que não respeitarem as medidas de quarentena estabelecidas pelo Decreto Estadual 64.881/2020 e continuarem a se locomover pelo estado de São Paulo e respectivos municípios, por suposta infração ao artigo 268 do Código Penal. Tal prisão, no entanto, seria ilegal.

O Decreto Estadual 64.881, de 22 de março de 2020, preceitua em seu artigo 3.º que “A Secretaria da Segurança Pública atentará, em caso de descumprimento deste decreto, ao disposto nos artigos 268 e 330 do Código Penal, se a infração não constituir crime mais grave”. Pois bem: o artigo 268 do Código Penal estabelece que “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa”. Trata-se de uma norma penal em branco que requer a complementação de outra norma para sua efetiva aplicação. Isso porque o tipo penal previsto no artigo 268 do Código Penal não define o que vem a ser a mencionada “determinação do poder público”.

Esclarecem Victor Eduardo Rio Gonçalves e Pedro Lenza (coordenador), em Direito Penal Esquematizado – Parte Especial, que “O crime em análise é modalidade de norma penal em branco, pois exige complemento por lei ou ato administrativo no qual o poder público faça determinação expressa visando impedir a introdução no país de doença contagiosa ou a sua propagação”. In casu, o complemento do delito tipificado no artigo 268 do Código Penal é feito pela Lei 13.979/2020, que define as medidas que podem ser tomadas pelo poder público para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. O artigo 2.º, inciso II, da mencionada lei define a quarentena como “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.

Percebe-se, assim, que a quarentenavisa a restrição e não a proibição de atividades, ponto que deve ser salientado. “Restrição” significa imposição de limites, de condicionantes. Em outras palavras, a restrição de uma atividade apenas impõe limites à sua prática, mas não proíbe que seja realizada. Assim, desde já fixa a premissa de que não é lícito ao estado de São Paulo proibir a locomoção dos indivíduos, mas apenas impor limites à sua locomoção.

Indo além, o artigo 3.º, inciso VI da Lei 13.979/2020 estabelece como deve ser feita a restrição das mencionadas atividades: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...) VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do país; e b) locomoção interestadual e intermunicipal”.

Dessa feita, a restrição da locomoção da população somente poderá ser aplicada pelas autoridades públicas de forma excepcional e temporária, mediante recomendação da Anvisa ecom o objetivo de restringir (e não proibir, frisa-se!) a entrada e saída do país e a locomoção interestadual e intermunicipal.

Verifica-se, de pronto, que não há qualquer menção na Lei 13.979/2020 à locomoção dentro do território do município. Assim, caso alguém desobedeça as determinações das autoridades públicas e se locomova dentro dos limites do território do próprio município em que se encontra, não haverá base legal para a sua prisão com fundamento no artigo 268 do Código Penal, pois a norma que complementa referido tipo penal não prevê tal conduta.

Ademais, o artigo 4.º do Decreto Estadual 64.881/2020 preceitua que “Fica recomendado que a circulação de pessoas no âmbito do estado de São Paulo se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercícios de atividades essenciais”. Destarte, o decreto estadual apenas recomenda e não restringe a circulação das pessoas; logo, como não há uma norma complementar editada mediante recomendação da Anvisa e determinando a restrição da locomoção interestadual ou intermunicipal, por ora, qualquer prisão no estado de São Paulo sob a alegação de afronta ao artigo 268 do Código Penal seria ilegal.

Por fim, ainda que seja editada referida norma complementar restringindo a liberdade de locomoção das pessoas, dificilmente haverá a prisão dos infratores. Isso porque, considerando-se a pena atribuída ao delito do artigo 268 do Código Penal (detenção de um mês um ano e multa), verifica-se tratar de um crime de menor potencial ofensivo, ou seja, de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos do artigo 61 da Lei 9.099/1995. Sendo assim, caso um indivíduo seja flagrado praticando a conduta proibida, será encaminhado à autoridade policial, assinará um termo circunstanciado e, se assumir o compromisso de comparecer ao juizado, não será preso, conforme preceitua o artigo 69, parágrafo único da Lei 9.099/1995: “Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.

Estejamos atentos!

Lenilson dos Santos, advogado pós-graduado em Direito Público, é assessor de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

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