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Feministas protestam em Madri, setembro de 2014
Feministas protestam em Madri, setembro de 2014| Foto: EFE

Vivemos em tempos intolerantes. O sujeito não pode expressar uma opinião séria e ponderável que, por ser divergente do mainstream acadêmico ou da opinião pública, logo passa a receber um cardápio de rótulos um tanto estultificantes: qualquer-coisa-fóbico, ultra-isso-ou-aquilo, supremacista, radical, fascista ou reacionário. Com isso, “conservador” virou até um termo elogioso. Todos os episódios de intolerância a que assistimos atualmente revelam o afã de uns por controlar a forma de pensar e de atuar dos demais. Ridículo.

Recentemente, numa palestra, ouvi, acompanhado de uma indignação performática, a afirmação de que seria “antipoliamorista” (?) pelo fato de defender a monogamia constitucional no casamento e na união estável. Esse tipo de intervenção retórica, manejado pelas técnicas do envergonhamento (shaming) e da rotulagem (labeling), é um exemplo perfeito e acabado da vontade de usar métodos coercitivos, desde a ação estatal ao escárnio público, com o claro propósito de impedir o debate e silenciar quem defende uma opinião distinta daquelas consideradas “aceitáveis” num ambiente social progressista.

A disposição de tomar a sério as pessoas das quais não concordamos – muito além da indiferença relativista – é justamente o que nos previne contra o dogmatismo e a bovinidade de pensamento.

Aliás, a tônica desse atual ambiente não se coaduna com o que dele poderia se esperar. Em suas fontes clássicas, os ideias progressistas sempre buscaram a tutela dos direitos individuais junto ao governo e à lei e o fomento das liberdades de expressão e de consciência, como fizeram Thomas Jefferson na defesa da Primeira Emenda e Stuart Mill nas linhas mestras de sua principal obra filosófica (On Liberty).

Hoje, os fautores do progressismo defendem que, em busca do tão sonhado igualitarismo – a versão deturpada da igualdade –, é preciso ir além dos limites constitucionais, dos direitos individuais e das garantias democráticas, meros detalhes a serem solapados, quando o importante é que todos sejam iguais não só nas oportunidades – o que é ótimo –, mas também nos resultados – o que é típico dessa mentalidade utópica. Basta olhar em volta para ver que somos desiguais nas capacidades e excelências. Por isso, não podemos passar a régua nessa igualdade torta, mas fomentar essa desigualdade num ambiente de complementaridade em prol do bem comum da comunidade em que vivemos.

Essa turma bem engajada faria Jefferson e Mill removerem-se no túmulo, ao menos a julgar pelos exóticos expedientes “progressistas” já criados: “censura universitária” em cerimônias de colação de grau superior; “linguagem de ódio” que impede a crítica da visão de sexualidade defendida pelo movimento LGBT; “alertas de conteúdo” ou “espaços seguros” para ideias que possam incomodar alguns adultos que ainda não superaram suas suscetibilidades juvenis; “direitos reprodutivos”, que, além da “educação sexual” escolar, anticoncepcional, preservativo, pílula do dia seguinte, ainda quer promover o aborto “seguro”, sem contar os boicotes públicos a produtos ou serviços de uma empresa quando seu dono resolve abrir a boca na hora errada para defender qualquer pauta tida como antiprogressista.

Eis o progressismo de nossa era. O progressismo antiprogressista. Existe uma versão dura, como aquela empregada em Cuba, China e Venezuela, utilizada para perseguir jornalistas e fazer calar dissidentes políticos. E, também, outra menos dura: os censores apresentam-se, frequentemente, como progressistas e, inclusive, operam dentro de sistemas democráticos e comprometidos com a legalidade. O ativismo judicial do TSE, recentemente, deu curso de doutorado no assunto.

Contudo, tais censores acreditam piamente que a democracia liberal e o Estado de Direito resultam insuficientes para se chegar à igualdade absoluta e, por isso, alguns mecanismos “corretivos” deveriam ser implementados, a fim de promover o império do pensamento único. Em outras palavras, é preciso dar o pulo do gato nesta receita política: quebrar mais alguns ovos para que a maionese progressista possa ser terminada e servida na mesa de suas causas clássicas.

Um exemplo é o feminismo, que não procura mais dar às mulheres os mesmos direitos políticos, civis e trabalhistas, mas visa ao combate das estruturas de “dominação misógina e da cultura do estupro”. A luta contra o preconceito racial não foca mais em garantias legais de igualdade de tratamento e de oportunidade, mas se concentra nas “cotas, no racismo sistêmico ou estrutural e na discriminação positiva”. O ambientalismo não está mais preocupado com a conservação e o uso racional dos recursos naturais, porque seu objetivo, agora, é o de salvar o planeta da “superpopulação e da mudança climática”.

A sociedade, como, de resto, a reflexão sobre seus problemas, é construída por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura mental ao outro e, sobretudo, do amor à verdade na práxis social. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

A busca da verdade prática não tem porque cerrar nossos ouvidos para nossos adversos na arena do debate social. Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes ou chocantes e submetê-lo ao “cancelamento” na opinião pública e nas redes sociais. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta ao outro, que sempre interpela nossa consciência, serve para aprofundar sua compreensão da verdade prática e melhorar sua capacidade de defendê-la.

A disposição de tomar a sério as pessoas das quais não concordamos – muito além da indiferença relativista – é justamente o que nos previne contra o dogmatismo e a bovinidade de pensamento, tão “tóxicos” para a saúde de nosso mundo acadêmico quanto para o bom funcionamento de nossa sociedade. Pois é, a toxicidade não fica só nos relacionamentos afetivos. Ela se supera.

Diante dessas tensões e contradições, voltemos aos ovos. Na cabeça progressista, parece perfeitamente admissível quebrar mais alguns ovos. O problema é que, para a mentalidade do progressismo antiprogressista – o progressismo que não só flerta com a intolerância e o autoritarismo, mas se apoia neles, por ser um “bem maior” em prol das causas defendidas –, sempre mais e mais ovos serão necessários.

E assim se age até que a maionese desande na preparação ou morram todas as galinhas da granja. Todavia, quem tem experiência na cozinha, sabe que isso não adianta. Quando se bate o olho na receita e logo se nota que ela é ruim, não há pulo do gato que resolva. Ou, nesse caso, mais ovos.

André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de direito, professor do CEU Law School e da Academia Atlântico, pesquisador da UNICAMP e membro da Academia Campinense de Letras.

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