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Nestes três últimos meses, pelo menos 24 pessoas inocentes morreram na Índia nas mãos de turbas convencidas de que estavam fazendo justiça. Entre elas, um engenheiro de software, morto a pauladas depois de distribuir chocolate para as crianças na porta de uma escola, e uma mulher de 65 anos que se perdeu enquanto ia para um templo com a família e parou para pedir informações. Ela e seus quatro acompanhantes tiveram as roupas arrancadas e receberam socos e pauladas. Um deles foi hospitalizado, em coma. A mulher, Rukmani, morreu na rua mesmo.

É isso que acontece quando o medo de estranhos sai do controle: muito frequentemente ele se revela mais perigoso que o próprio desconhecido.

O pânico começou em abril, com um viral que mostra uma criança sendo “roubada” na rua por dois homens em uma moto. Acontece que o vídeo foi criado originalmente no Paquistão, como parte de uma campanha de utilidade pública para alertar os pais dos perigos de não monitorar os filhos de perto. O fim do clipe mostrava o garoto sendo devolvido pelos “sequestradores”, que seguravam um cartaz com os dizeres: “Basta um momento para tirar uma criança das ruas de Karachi”.

Entretanto, não foi essa a versão que milhões de indianos viram no WhatsApp. Na Índia, o vídeo adulterado não mostrava o final, impossibilitando o público de saber que o garoto reaparecia.

Exagerar os perigos infantis é péssimo para a tolerância, mas excelente para chamar a atenção

O rapto de crianças é um problema terrível nos dois países. Segundo a propaganda paquistanesa, 3 mil desaparecem todo ano, mas há fontes que elevam esse número para 35 mil. Na Índia, em 2015, as estimativas falavam de quase 42 mil denúncias – número absolutamente tenebroso, mesmo que represente apenas 0,01% da população infantil local.

Então, por que não lembrar os pais dessa ameaça e de sua responsabilidade de proteger os pequenos?

Porque o ser humano já é programado para ser extremamente protetor em relação aos filhos. A exibição de um vídeo em que um garoto inocente é raptado por um malfeitor não inspira prudência, mas vingança. E compartilhá-lo só gera pânico e revolta, geralmente contra aqueles que parecem diferentes. Várias das pessoas mortas na Índia tinham simplesmente ido parar em locais desconhecidos ou não falavam o dialeto local.

Quando os boatos da existência de predadores se misturam com a tecnologia, o resultado tende a ser explosivo. Em 1475, por exemplo, houve um caso que ficou famoso: foi nesse ano em que Simão, um menino da cidade italiana de Trento, foi encontrado morto. Não demorou para que se espalhassem boatos de que os judeus o tinham matado para usar seu sangue na produção do pão ázimo para o Pessach. Vários membros da comunidade judaica local – que, na época, eram vistos como “aqueles outros” – foram torturados para confessar o crime. Oito foram executados.

A história foi tão revoltante e chocante que não foi esquecida; os libelos de sangue persistem até hoje. Mas tiveram ajuda logo de início. A história de Simão de Trento se proliferou rapidamente graças à ajuda do equivalente na época às redes sociais de hoje: a imprensa escrita. “Houve poemas, pôsteres, retratos, até tratados sobre o caso em vários idiomas”, conta a historiadora Emily Rose, autora de The Murder of William of Norwich: The Origins of the Blood Libel in Medieval Europe.

Leia também: A violência que se sente (artigo de Fabricio Rebelo, publicado em 1.º de julho de 2018)

Leia também: Abuso sexual, um tabu? (artigo de Raquel Heep, publicado em 15 de maio de 2018)

Depois disso, outras aldeias começaram a fazer o mesmo tipo de acusação, gerando mais violência contra os judeus, além de um prestígio distorcido. Exagerar os perigos infantis é péssimo para a tolerância, mas excelente para chamar a atenção. “Você deixa de ser um Fulano provinciano qualquer para ocupar o centro de uma história de profunda importância religiosa”, prossegue ela.

O clipe que causou a morte de tanta gente na Índia muito provavelmente foi inspirado pelos vídeos extremamente populares no YouTube, que mostram como o sequestro infantil é supostamente fácil. Um deles, já visto mais de 13 milhões de vezes, termina afirmando que “mais de 700 crianças são abduzidas a cada dia”. O que é uma bobagem muito grande. Em 2011, ano mais recente para o qual o Departamento de Justiça tem estatísticas sólidas, 105 crianças norte-americanas desapareceram por causa de “sequestros padrão” – ou seja, aquela abdução estranha que se vê em Law & Order. Mas não é por dia. É por ano.

O fato é que, quando boatos assustadores são repetidos vezes sem conta – e assistidos também –, mudam a maneira como vemos o mundo. É por isso que, atualmente, é raro o dia em que entro no Facebook e não vejo uma postagem que começa mais ou menos assim: “Meu nome é Amanda e moro em Longview, Texas. É bem provável que minha filha de 2 anos tenha se tornado ontem uma vítima em potencial de um esquema de tráfico sexual. Entrei na fila do mercadinho do bairro no começo da tarde; quando tirei minha filha do carrinho, o casal na minha frente veio com aquela conversa ‘Que gracinha é a sua menina’.”

Estranhos – segundo ela, indianos – elogiando sua filha. Só isso. Foi o que bastou para que essa mãe achasse que eram sequestradores.

Em todas essas histórias nas redes sociais, incluindo a de Amanda, nenhuma criança chega a ser abduzida. Nenhum dos estranhos vai além de um olhar ou um comentário. O pânico é que faz o resto.

Hoje em dia, até aqueles que querem ser bons samaritanos temem que sua gentileza seja mal interpretada

David Finkelhor, presidente do Centro de Pesquisa de Crimes Infantis da Universidade de New Hampshire, afirma não ter conhecimento de nenhum caso de crianças com menos de 10 anos, nos EUA, que tenham sido raptadas em local público para serem vendidas no tráfico; no entanto, essas postagens acabam sendo compartilhadas milhares de vezes, geralmente com comentários do tipo “Que bom que vocês estão bem!”, ou “Mães, fiquem de olho nos seus filhos!”.

Se ficamos! Mudamos a infância completamente por causa dos nossos medos. Hoje, apenas 13% da garotada norte-americana vai para a escola a pé, e grande parte desse declínio se deve ao medo dos predadores. Na verdade, os pais que permitem aos filhos andarem sozinhos ou brincarem na rua arriscam-se a ser detidos ou investigados quando algum transeunte presume que a criança pode ser sequestrada e chama a polícia para denunciar o caso de “risco”. Aconteceu este mês mesmo na minha cidade natal, Wilmette, no Illinois, onde uma mãe foi investigada por deixar que a filha de 8 anos desse uma volta no quarteirão com o cachorro.

O medo é um vírus; uma vez infectados, alucinamos, vendo ameaças por toda parte. E é muito difícil estancar a disseminação.

Depois dos casos recentes de violência na Índia, o WhatsApp vem exibindo anúncios pedindo ao público que seja cético em relação às histórias escandalosas e limite a cinco o número de encaminhamento de mensagens, para tentar driblar a histeria. Pois eu gostaria de pedir aos norte-americanos que parem de postar e compartilhar histórias do tipo “Meu filho quase foi raptado” também.

Porque o fato é que, hoje em dia, até aqueles que querem ser bons samaritanos temem que sua gentileza seja mal interpretada. Em 2002, na Inglaterra, um homem viu uma garotinha que parecia ter uns 2 anos zanzando sozinha na rua. “Fiquei pensando ‘Será que não devia ter voltado?’ E uma das razões por que não o fiz foi o fato de achar que alguém poderia me ver e pensar que eu a estava abduzindo”, disse Clive Peachey mais tarde à imprensa. A garotinha acabou se afogando em uma lagoa.

Parem de espalhar rumores histéricos e comecem a dar às pessoas o benefício da dúvida. Vidas inocentes dependem disso.

Lenore Skenazy é presidente do Let Grow, grupo apartidário que promove a resiliência e a independência infantis, e autora de “Free-Range Kids”.
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