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| Foto: Imagem Ilustrativa / Elza Fiúza - Abr

A pandemia do novo coronavírus será lembrada para sempre como um dos maiores desafios já enfrentados pela humanidade. Por isso, vale perguntar: Qual é a história que estamos escrevendo? Será a história de uma grande vitória da medicina, a exemplo da erradicação da poliomielite ou do tratamento em massa para HIV/Aids nos anos 2000? Ou iremos reescrever a tragédia da falta de acesso a medicamentos, que ceifou milhões de vidas no início da pandemia de HIV/Aids e que continua condenando à morte pessoas que não conseguem pagar pelo tratamento de hepatite C, diabetes, câncer e tantas outras doenças?

A "crise de acesso" é uma tragédia cuja resolução ou perpetuação depende principalmente de decisões políticas. Para combater a pandemia que vivemos, o momento de tomar tais decisões é agora. Algumas delas passam pelo campo da propriedade intelectual. Isso porque os monopólios gerados pelas patentes podem criar barreiras, gerando escassez de medicamentos, vacinas e outras ferramentas médicas, seja por produção insuficiente, seja por preço proibitivo. Como na pandemia de Covid-19 tudo é elevado à máxima potência, caso fiquemos presos em tais barreiras, estaremos escrevendo a pior crise de acesso da história da humanidade.

O sistema de propriedade intelectual tem muitas funções. Uma delas é gerar disseminação de conhecimentos. Em momentos de crise de saúde, é exatamente esse aspecto que precisa ser reforçado, para garantir que haja produção em massa das tecnologias de saúde mais efetivas e que elas estejam ao alcance de todas as pessoas, independente do país onde moram ou de quanto dinheiro tem no bolso. Dentre as ferramentas disponíveis no sistema de patentes, a licença compulsória é a mais adequada para alcançar esta meta e para construir um legado de defesa da vida, que nos tornará mais fortes para futuras pandemias. No entanto, a licença compulsória é também o mecanismo mais estigmatizado, cercado de mitos infundados e narrativas fictícias.

Está na hora de enfrentar estes mitos. Afinal, esse dispositivo existe há mais de 100 anos nas regras de comércio internacional e tem sido amplamente usado nos mais variados campos tecnológicos, por países de todas as faixas de renda, com destaque para os países mais ricos. Só na área de medicamentos, a licença compulsória foi usada 100 vezes entre 2001 e 2016, em 89 países. Ainda assim, é frequente encontrar artigos de opinião que apontam a licença compulsória como uma medida "ameaçadora", "drástica", "prejudicial", "precipitada", "imprevisível", como foi o caso do artigo publicado pelo economista Maurício F. Bento.

O autor não traz nenhum dado que comprove suas alegações. Alinhado com o posicionamento da Interfarma, associação que defende os interesses de grandes empresas farmacêuticas, o artigo sugere que o uso de licença compulsória para garantir que mais vidas sejam salvas em meio a pandemia de Covid-19, conforme propõe o PL1462/20, irá causar danos permanentes às empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento, afetando futuras inovações em todos os setores da economia. Além disso, alega que o uso da licença compulsória prejudicará a atração de investimentos, bem como a realização de acordos com países como os EUA.

Curiosamente, os EUA é um dos países que mais usou a licença compulsória ao longo da história. Dentre as muitas empresas que foram alvo de licenças compulsórias determinadas pelo governo norte americano estão: Microsoft (1997), Monsanto (1998), Chevron (2001), Apple (2011), Samsumg (2013). Desnecessário dizer que nenhuma delas sofreu danos permanentes nem deixou de inovar.

A afirmação de que licença compulsória prejudica atração de investimentos também carece de provas. Na Tailândia, onde foram licenciados compulsoriamente 7 medicamentos, não foi identificada nenhuma relação entre essas licenças e os investimentos estrangeiros no período de 2002 a 2008. No Brasil, a farmacêutica Merck, que teve uma patente licenciada compulsoriamente em 2007, nunca moveu nenhuma ação judicial contestando a decisão e seguiu investindo no Brasil, tendo faturado R$ 1,4 bilhões em vendas líquidas em 2018.

Outro recurso bastante utilizado pelos opositores de plantão da licença compulsória é a falsificação da história. A única licença compulsória utilizada no país, em 2007, não foi um fracasso e não causou espera para a população. Pelo contrário, gerou economia de mais de 100 milhões de dólares para os cofres públicos e aumento de 43% da quantidade de pessoas em tratamento. O terceiro objetivo da licença seria a absorção da tecnologia por produtores nacionais. Isso só não aconteceu de forma rápida porque a patente licenciada não continha informações suficientes para a reprodução da tecnologia, fato que foi denunciado pela delegação brasileira na Organização Mundial da Propriedade Intelectual em 2010.

Portanto, ao omitir este fato e ao afirmar que "o licenciamento compulsório não promove a rápida transferência de conhecimento e não acelera a produção de medicamentos", tanto o Sr. Maurício F. Bento como a Interfarma estão defendendo a violação de um dos princípios básicos do sistema de patentes: a devida revelação da tecnologia na patente concedida de modo que qualquer empresa seja capaz de reproduzi-la.

O discurso que se esquiva das evidências do mundo real tem por óbvio o intuito de defender o indefensável. Neste caso, defende-se a receita para uma tragédia anunciada, de uma crise de acesso de proporções nunca antes vistas, com base em um cálculo perverso onde populações pagam a suposta conta da inovação com suas vidas. Aceitar o discurso de que as empresas farmacêuticas devem ter monopólios e cobrar caro para que a inovação continue existindo é aceitar uma violência estrutural devastadora: a inovação só pode existir para quem é capaz de pagar por ela. Os demais devem se conformar em morrer para que a inovação não seja abalada e continue salvando apenas os que podem pagar. A licença compulsória é uma maneira de quebrar este ciclo, garantindo acesso para todos. É uma peça fundamental se quisermos construir um legado como aquele da erradicação da pólio, cuja vacina não foi patenteada, ou do tratamento em massa para HIV/Aids, que só foi possível quando as patentes deixaram de ser um obstáculo.

Com o uso da licença compulsória não há perdedores. As empresas continuarão realizando vendas volumosas e ainda receberão royalties de concorrentes. Não haverá prejuízo para a capacidade de investir em inovação. Os governos que estão investindo pesado em muitas das inovações para Covid-19 também sairão ganhando, pois poderão distribuir os frutos dessa corrida em busca da cura, protegendo suas populações e reativando suas economias. Os médicos ganham, pois não precisarão escolher quem salvar. E claro, todos nós ganhamos, pois quando a vida se torna a prioridade política primordial, construímos sociedades mais solidárias, éticas e justas, valores estes que nos tornarão imunes a toda sorte de ameaças. A aprovação do PL 1.462/2020 é essencial para a construção deste legado.

Felipe Fonseca e Pedro Villardi, coordenadores do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip).

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