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Ao longo da história portuguesa e de sua continuação durante o Império do Brasil, uma família era dona do território, das riquezas naturais e do trabalho das pessoas aqui domiciliadas. Essa família escolhia um de seus membros para encarnar a figura do governante. Todos os habitantes do território eram ocupantes da "fazenda pública" pertencente à família coroada. As pessoas que desagradavam a família proprietária eram banidas da fazenda ou declaradas civilmente mortas. A monarquia é onticamente excludente.

A república condominializa o Estado, que deixa de ser objeto da propriedade de uma família ou um estamento, e passa a ser "res omnium". Por ser de todos, afasta a concepção de propriedade assentada sobre a idéia de coisa susceptível ao uso, fruição e disponibilidade por alguém, excluindo outrem. A república é radicalmente includente.

A concepção republicana, ao considerar todos como iguais em relação aos bens coletivos, ressalta a dignidade de cada pessoa tão somente pela condição de pessoa, independentemente das posses materiais ou intelectuais particulares, embora remanesça a idéia de propriedade dos bens públicos, tanto que os não-proprietários – os estrangeiros – não têm os poderes condominiais. Ainda que limitada aos nacionais, a magnificação numérica de proprietários dilui o sentimento de propriedade e boa parte dos condôminos não compreende a condição de dono da res publicae, permitindo que ela se transforme em Cosa Nostra.

A igualdade no condomínio deve ser o piso sobre o qual se assentam as colunas e vigas da constituição de um ente associativo que se destina a servir a todo o povo, senhor das razões do Estado. Parte dessa construção é a definição do modo de gerir os bens comuns.

Todos governarem todos, todo o tempo, é uma impossibilidade material. O romantismo anarquista da ausência de governo também é materialmente impossível quando posto diante das premências de saúde, segurança, desenvolvimento. A autogestão é poética, tornando as sensações do viver mais suaves, porém há momentos que é preciso dizer: "primo vivere, dopo sognare". Governar a república é uma necessidade inafastável.

Nas monarquias governava-se diretamente, do mesmo modo que um proprietário, e a legitimação das decisões provinha do raciocínio privatístico do direito de propriedade. Como governar legitimamente um Estado republicano se não é materialmente factível a presença de todos os condôminos nos atos de governo? Na resposta, quaisquer sejam as variantes, haverá uma constante: governa-se por representação.

Representar é tornar presente alguém ausente. A relação entre representante e representado é similar àquela descrita no art. 653 do Código Civil, operando-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. O lastro do mandato é a confiança entre mandante e mandatário. Rompida a confiança, fenecem as condições para o mandatário representar o mandante. A irrevogabilidade por prazos longos ou até mesmo a vitaliciedade do mandato são colidentes com a manutenção cotidiana da confiança.

Em pequena escala, entre um mandante e um mandatário, a representação é de fácil administração. Ocorre, quando se tem em conta todos os habitantes de um Estado, o número de mandantes monta milhões e a concessão do mandato, o controle dos atos praticados pelo mandatário, a fixação de tempo para o exercício do mandato de modo a que o mandatário não capture o mandante, invertendo a relação de poder, são questões essenciais para garantir que o povo, do qual provém o poder sobre as coisas públicas, esteja efetivamente presente, velando para que o uso, fruição e disposição de seus bens seja feito em seu interesse e não dos gestores "ad hoc".

Se houver defeito na representação pode-se causar situação na qual os mandantes sejam excluídos do processo de tomada das decisões públicas e do partilhamento dos benefícios propiciados pelo Estado, restando-lhes apenas os ônus. Construir e manter um sistema institucional destinado a assegurar a higidez da relação entre mandantes e mandatários, é tarefa de todas as pessoas que prezam os valores da liberdade e igualdade propiciados pela república.

A quase vintena da Constituição de 1988 demonstrou que não se atingiu situação ótima na relação entre representados e representantes, entre povo e políticos em razão dos defeitos jurídicos que permitem a impunidade daqueles que traem a confiança do povo, outorgante do poder. Por isso a reforma política é necessidade urgente.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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