
Ouça este conteúdo
Não é difícil entender o recente problema da “desinformação” envolvendo a crise do Pix, desde que o interessado compreenda algumas informações orbitais – por exemplo, entender o mercado de notícias como é: um mercado. O jornalista recebe salário da emissora; a emissora recebe recursos de empresas (investimento em publicidade); as empresas recebem recursos dos clientes alcançados pela emissora, e a cadeia de transações baseadas em interesses individuais continua indefinidamente.
Ocorre que um dos maiores financiadores do mercado de notícias é o governo. Se o governo “investe” em publicidade, como espera receber o “retorno do investimento”? E quem recebe o retorno – o Estado ou o partido político que controla o governo no momento do “investimento”? Em 2022, uma determinada emissora recebia 28% de toda a publicidade governamental e, após eleição, o quinhão das verbas públicas recebido pela tal emissora passou para 56%.
Assim, quando o governo “investe” milhões de reais para financiar “publicidade de interesse público”, o salário do jornalista se torna uma fração de recurso publicitário. Fica a dúvida: como diferenciar do jornalista, que tem o dever de reportar uma informação de forma isenta, do assessor de imprensa, que se apresenta como jornalista para defender os interesses de quem lhe paga o salário?
Nada mais natural, portanto, que as pessoas tenham dificuldade em diferenciar aquilo que é jornalismo daquilo que é propaganda oficial.Esse cenário apenas descreve um dos motivos da destruição da credibilidade da chamada velha mídia, quando as pessoas perceberam que opiniõeseram transmitidas como se fossem informação, ou seja, perceberam que estavam sendo enganadas.
Desinformação apenas existe como elemento de controle de um sistema político autoritário, no qual a fake news é aquilo que a autoridade diz que é, conforme os “moderadores de conteúdo” que, por coincidência, fazem parte da velha mídia
E não se pretende atacar o jornalista (que também tem seus interesses individuais, como manter o emprego e comprar comida). Na verdade, não há nenhum problema de um jornalista expressar sua opinião, inclusive quando atua como assessor de imprensa. Mas é importante, para o leitor, distinguir a função do jornalista da função de assessor de imprensa, justamente para assegurar credibilidade.
E por que tratar disso? Porque a atuação da velha mídia no caso recente da crise do Pix e o vídeo do deputado Nikolas Ferreira foi tão abjeta que ultrapassou os limites mais básicos da institucionalidade democrática. Uma coisa é esconder interesses e transmitir opiniões como se fossem fatos objetivos. Outra coisa é criar uma fake news para desmentir uma “desinformação” que nunca existiu.
A velha mídia se organizou para defender o governo e rebater a crítica feita por um deputado da oposição. Nessa defesa e tentativa de terminar com a crise, a velha mídia criou uma fake news e afirmou que o deputado estaria desinformando a população ao dizer que haveria a taxação do Pix. Ocorre que a tal desinformação é, ela mesmo, fake news. No tal vídeo, o deputado expressamente declara por duas vezes que “o Pix não será taxado”. Imediatamente após a frase anterior, o deputado continua: “Mas não duvido que possa ser”. Será mesmo possível que a velha mídia esteja tão acostumada com essa forma de pensar (e distorcer o mundo) que tenha perdido a própria capacidade de distinguir fatos de opiniões?
“Duvido que o pix não possa ser taxado” não é uma “desinformação” simplesmente porque a frase não apresenta um fato objetivo – mas tão somente uma conjectura – uma suspeita expressamente declarada como mera opinião. E é uma opinião contextualizada em uma argumentação válida: o deputado informa que o governo atual não tem credibilidade porque reiteradamente descumpriu promessas anteriores, como no caso da “comprinha da China não seria taxada, mas foi”; ou do sigilo presidencial.
É desalentador conferir o descalabro institucional no qual o Brasil está atolado. Para responder à inexistente campanha de desinformação e tentar dar fim à crise do Pix, o Banco Central publicou nas suas redes sociais um vídeo que deve ser assistido por todos os brasileiros para que possam compreender como o Estado realmente os enxerga. Narrado pelo BC Sincero Full Pistola, o Banco Central do Brasil explica para os “bebês” e para os “amantes de teoria da conspiração” que a desinformação do Pix é “puro suco de golpe”. Assistindo ao vídeo me lembrei de outro exemplo grotesco de degradação institucional – o boneco “Super Maduro”, brinquedo representando Nicolás Maduro, distribuído “gratuitamente” pelo governo da Venezuela.
Inclusive, se o deputado Nikolas incorreu em “desinformação”, o mesmo poderia ser dito do Banco Central do Brasil no vídeo do BC Full Pistola. A tumbnail do vídeo registra a “cobrança do Pix é fake news”, e há trecho no qual o narrador declara expressamente que “é lorota que o pix será cobrado”. A palavra cobrança está agora em itálico porque, diferentemente do que afirmou o Banco Central, há sim cobrança no Pix – confira-se o documento “Tabela de tarifas vigente” do banco Caixa.
Evidentemente, o BC Full Pistola não estava tratando das tarifas bancárias, mas esse fato não ficou expressamente explicado no vídeo. Houve desinformação? A resposta é não. Qualquer pessoa normal consegue compreender que o vídeo do BC é um estúpido e imbecilizado desperdício de dinheiro público, mas não incorre em desinformação. E assim compreende por que sabe que a expressão cobrança foi realizada dentro de um contexto (em outro trecho o narrador declara expressamente “se você fazia Pix gratuitamente, vai continuar fazendo”). Aliás, de forma descontextualizada, sequer existe comunicação.
O próprio conceito de desinformação é uma estupidez, uma ideia absolutamente estéril. A informação, mesmo errada, é necessária na medida em que permite identificar aquilo que é falso. Nesse debate é sempre bom rever o conceito de falseabilidade científica de Popper: ciência é um processo organizado de testes de falseabilidade, e a verdade científica é aquilo que sobrevive ao teste da refutação. Tal obviedade evidencia o grau indescritível da falência moral da esquerda política brasileira: se declara defensora da “ciência” e ao mesmo tempo busca estabelecer a verdade por meio de decreto e ameaça de prisão, ao invés de se submeter ao escrutínio da análise racional prescrita pelo debate científico.
Toda essa crise envolvendo o Pix mostra que a desinformação apenas existe como elemento de controle de um sistema político autoritário, no qual a fake news é aquilo que a autoridade diz que é, conforme os “moderadores de conteúdo” que, por coincidência, fazem parte da velha mídia. E devemos acreditar que tudo isso é no melhor interesse da defesa da democracia, e esquecer a famosa pergunta de Bobbio (“quem controla os controladores”) porque nossos líderes não apenas são pessoas “do bem”, mas estão aptas para atuar como editores da sociedade para impulsionar nossa história.
Um adendo: o governo brasileiro intimou o Facebook para que explicasse sua nova política de moderação de conteúdo – o governo quer manter o sistema atual de moderadores externos. Mas será mesmo? Poderia o Facebook manter o sistema atual, mas trocar os moderadores? Pessoalmente, gostaria de ver o comediante Léo Lins como diretor do Departamento de Fake News do Facebook. Fica a dica.
Assis José Couto do Nascimento é advogado.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



