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O governo que, aparentemente, quer uma narrativa transparente do período da ditadura, deseja manter a maior parte da nossa história nos porões do segredo

O presidente do Senado, José Sarney, que defende sigilo eterno para documentos secretos, sugeriu que sua divulgação pode causar atritos com nossos vizinhos. "Não podemos fazer o WikiLeaks da História do Brasil", sublinhou Sarney, certamente preocupado com as graves consequências da divulgação dos segredos da Guerra do Paraguai ou das negociações do Barão do Rio Branco que fixaram nossas fronteiras.

Sob argumentos nada claros, e alguns francamente cômicos, o governo federal deu marcha ré em seu anunciado projeto de transparência. Como salientou editorial do jornal O Estado de S.Paulo, a mesma presidente Dilma Rousseff que escolheu a data de 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, para sancionar a lei que acabaria com o sigilo eterno de documentos oficiais brasileiros –e, por isso, instou o Senado a aprovar com rapidez a matéria –, simplesmente aceitou que se retirasse o caráter de urgência do projeto.

Pela legislação atual, os documentos de caráter "ultrassecreto" ficam 30 anos inacessíveis ao público, e esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A Câmara dos Deputados decidiu, no ano passado, em acordo com o governo, diminuir para 25 anos o tempo do sigilo, autorizando sua renovação por uma vez apenas: 50 anos. Mudou para melhor. Estaria de bom tamanho.

O projeto da Câmara foi encaminhado ao Senado. Dilma comprometera-se a apoiar sua votação tal como o texto se encontrava. Rendendo-se ao titular do Senado, José Sarney, e ao ex-presidente Fernando Collor, que dirige a Comissão de Relações Exteriores da Casa, Dilma concordou com a interdição perpétua dos documentos ultrassecretos. Como bem salientou Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, chegamos a um ponto em que uma legislação moderna, que poderia ser conhecida como "a lei da transparência", acabará chamada de "a lei do sigilo eterno".

Como conjugar a Comissão da Verdade, defendida pelo governo, com a promoção do sigilo eterno? O governo que, aparentemente, quer uma narrativa transparente do período da ditadura, deseja manter a maior parte da nossa história nos porões do segredo. A quem interessa o silêncio? A resposta, caro leitor, é simples e está articulada com outra iniciativa que, sorrateiramente, transita no Congresso Nacional: a Lei da Mordaça.

De autoria do deputado Sandro Mabel (PR-GO), o texto foi modificado pelo relator na CCJ, Maurício Quintella Lessa (PR-AL). A proposta original classificava como crime a divulgação e o vazamento de qualquer tipo de informação que fosse objeto de investigação oficial. Maurício Quintella restringiu o crime às apurações criminais, mas deixou claro que a nova tipificação será aplicada não só ao servidor que vazar a informação, mas também a quem divulgá-la na imprensa. Quer dizer: denunciar corrupção pode dar cadeia.

A cereja que faltava ao bolo da ilegalidade e da falta de ética chegou antes do que se imaginava. Medida Provisória 527, aprovada na Câmara, prevê a manutenção em segredo de orçamentos prévios para as obras da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. O procurador-geral de República, Roberto Gurgel, afirmou que é "escandalosamente absurda" a decisão da Câmara. Estamos, pois, na antesala de um provável megaescândalo patrocinado pelo sigilo protetor da impunidade.

A sociedade brasileira assiste, atônita, ao nascimento de um nefasto contubérnio. Deram-se as mãos corrupção e autoritarismo. O secretismo de Estado é um perigo para a democracia. O princípio da presunção da inocência deve ser garantido, mas não à custa da falta de transparência. O princípio constitucional da publicidade, pelo qual qualquer cidadão tem direito a obter das autoridades públicas informações de interesse pessoal e geral, está sob fogo cruzado.

O combate à corrupção reclama uma imprensa livre e sem amarras. Não se pode admitir que o governo oculte informações de interesse público. A Lei da Mordaça é uma bofetada na democracia. Por outro lado, o sigilo eterno é uma forma perversa de supressão da história. Se o governo insistir no anacronismo, autoritário e obscurantista, acabará nascendo o WikiLeaks da cidadania.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com). E-mail: difranco@iics.org.br

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