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Embora poucos estejam dispostos a expressar esse argumento de forma explícita, ele está presente de maneira velada no discurso de muitos defensores do aborto: a ideia de que algumas vidas são indesejadas e, portanto, descartáveis, com base em critérios subjetivos.
Um exemplo recente veio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao fazer uma declaração polêmica que equiparou o bebê fruto de estupro a um “monstro”. Em suas palavras: “Então é preciso, de forma civilizada, a gente discutir. […] Por que uma menina é obrigada a ter um filho de um cara que estuprou ela? Que monstro vai sair do ventre dessa menina?”.
A mensagem subjacente é clara: o valor de uma vida humana pode variar de acordo com as circunstâncias de sua concepção. Essa lógica, por mais chocante que pareça, ressoa com ideologias sombrias do passado, como as defendidas por Hitler e pelo regime nazista, que também consideravam algumas vidas menos dignas do que outras, com base em critérios arbitrários e desumanizadores.
Esse pensamento não é apenas teórico ou abstrato. Ele teve e continua tendo consequências trágicas e reais. Roberto Vidal da Silva Martins, no livro A questão do aborto. Aspectos jurídicos fundamentais, relata um episódio marcante da juventude de Joseph Ratzinger, o futuro papa Bento XVI, durante a Segunda Guerra Mundial:
O papa Bento XVI, na Segunda Guerra Mundial, apenas Joseph Ratzinger, relata que convivia com um primo-irmão seu, mongolóide [sic], que era a alegria da família. Um garotinho de doze anos muito afetuoso e efusivo, que representava para o jovem seminarista uma fonte de muito aprendizado, até que um dia bateram às portas da sua casa os agentes do governo hitleriano para recolher o menino, para que, nos hospitais públicos, assim diziam, “ele fosse melhor atendido e acompanhado”.
Compulsoriamente arrancado do lar familiar, o menino, em menos de duas semanas, não mais existia. O governo nazista inventou, para dar uma satisfação à família Ratzinger, uma pneumonia que o garoto teria “contraído” e “não resistido a ela”.
A existência daquele garoto encantador e inofensivo no lar de Ratzinger era uma bofetada na sociedade que exaltava “uma raça pura”, reação não muito diferente de alguns magistrados da história recente do Brasil, que decidem contra a lei penal brasileira quem deve viver (os normais) e quem deve morrer (os nascituros com malformações fetais).
A presença daquele garoto especial no lar de Ratzinger era uma afronta a uma sociedade que exaltava a ideia de uma “raça pura”. Infelizmente, vemos ecos desse mesmo espírito em decisões judiciais recentes no Brasil, nas quais alguns magistrados se julgam no direito de decidir, contra a própria legislação penal, quem deve viver (os considerados “normais”) e quem pode ser eliminado (os nascituros com malformações fetais).
Quando se dá a burocratas e técnicos o poder de decidir quem merece viver, abre-se um precedente perigoso. O Dr. James D. Watson, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1962, declarou em uma entrevista de 1973:
“Se uma criança só fosse considerada viva a partir do terceiro dia após o nascimento, então todos os pais teriam a oportunidade de escolher que, na sociedade atual, só se concede a uns poucos. O médico poderia deixar que a criança morresse, se os pais assim decidissem, o que evitaria muito suplício e sofrimento. Acredito que esta seja a única atitude plenamente racional e compassiva que se pode ter”.
Essa perspectiva utilitarista, disfarçada de compaixão, reflete a mentalidade eugenista: vidas são avaliadas com base em critérios de conveniência, perfeição física ou potencial produtivo.
Lamentavelmente, essa prática não ficou no passado. Países como a Islândia, onde a taxa de nascimentos de crianças com Síndrome de Down é de 0%, aplicam uma política de aborto eugênico que elimina essas vidas antes mesmo de nascerem. Se o aborto fosse criminalizado, nenhuma dessas crianças teria sido executada por não se enquadrar em um padrão idealizado de “perfeição”.
No Reino Unido, em 2015, dos 730 diagnósticos de bebês com Síndrome de Down, 689 foram abortados, ou seja, 94,3% dos casos. Além disso, dos 31 fetos diagnosticados com lábio leporino, 11 foram abortados; e, entre os 11 diagnósticos de microcefalia, 5 resultaram em aborto.
Os números evidenciam que, mesmo hoje, o pensamento eugenista continua vivo e atuante, ditando quem merece nascer com base em características físicas ou cognitivas
Embora a maioria dos defensores do aborto rejeite explicitamente qualquer associação com a eugenia nazista, é inegável que a eliminação dos “menos aptos” representa uma versão moderna desse mesmo princípio: a busca por uma sociedade higienizada, idealizada, onde apenas os “mais bem-nascidos” têm direito à vida. Como responder a esse argumento? Simples: apontando os horrores históricos já causados por esse tipo de mentalidade.
Muitos progressistas afirmam se opor firmemente ao nazismo, mas ignoram que a defesa do aborto, especialmente em casos de deficiência ou origem traumática, é um passo na mesma direção.
É a mesma lógica: o valor do ser humano é medido por sua utilidade, produtividade, perfeição ou circunstância de origem. Trata-se de uma crueldade disfarçada de progresso e compaixão, que reduz o ser humano a um objeto descartável diante dos interesses do Estado ou da sociedade.
É essencial alertar que tais argumentos, embora revestidos de aparente preocupação com o bem-estar coletivo, nos conduzem a uma verdadeira “cultura da morte”. Uma sociedade que decide quem deve viver e quem deve morrer está flertando com um abismo moral profundo, cujas consequências serão devastadoras.
Que Deus nos ajude a resistir a esse caminho sombrio e a preservar o valor intrínseco da vida humana, toda vida humana, do início ao fim.
Ramon de Sousa Oliveira é pastor presbiteriano e autor do livro “O Valor da Vida”.



