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“Esta pergunta não está à altura da Polícia Federal”, reagiu um arrogante Lula ao ser indagado, na fatídica sexta-feira, sobre os pedalinhos mantidos no sítio de Atibaia. Mas a lógica da pergunta decorre da regra “siga o dinheiro”. No rastro dos pedalinhos, há muito mais que a propriedade do próprio sítio. Eles indicam o caminho da Internacional lulista – uma articulação que, ao contrário das Internacionais operária, socialista, comunista e trotskista, rege-se por um misto de política e negócios.

Do Casco Antiguo da Cidade do Panamá, não se avista mais a península. “O horizonte do Golfo se perdeu”, lamenta a presidente de uma organização consagrada à proteção do patrimônio histórico do país ístmico. De fato, em 20 de maio de 2011 foi inaugurado o viaduto de seis pistas e 2,8 quilômetros que rasga o mar à frente do centro histórico, uma obra da Odebrecht contratada por US$ 780 milhões. Lula participou da inauguração, a convite do presidente panamenho Ricardo Martinelli, com quem participaria de um jantar oferecido pela Odebrecht. O evento contou com a presença do ministro José Domingo Arias, candidato do presidente a sucedê-lo, que acabou derrotado em 2014, apesar dos esforços do marqueteiro João Santana.

Lula, Odebrecht, Santana. Na Internacional lulista, o quarto componente é o BNDES, responsável pelo financiamento do metrô da capital panamenha e da Autopista Madden-Colón, obras tocadas pela mesma Odebrecht, que venceu todas as grandes licitações no governo Martinelli. O Panamá não é um caso singular: o esquema quadripartite repetiu-se na Argentina (ferrovia Sarmiento), no Peru (hidrelétrica de Chaglla), na Venezuela (ponte sobre o Orenoco e metrô de Caracas), na República Dominicana (termelétrica de Punta Catalina e 16 outras obras) e em Angola (hidrelétrica de Lauca e dezenas de outras obras). Sem Santana, mas com a Odebrecht e o BNDES, a Internacional operou em Moçambique (BRT de Maputo e aeroporto de Nacala), no Equador (hidrelétricas de San Francisco e Manduriacu) e em Cuba (Porto de Mariel). Finalmente, com a Odebrecht e Santana, mas sem o BNDES (ufa!), seus tentáculos alcançaram El Salvador.

Lula deixou a Presidência, mas não o poder

“Lula é uma fonte de inspiração para a América Latina”, proclamou Danilo Medina, presidente da República Dominicana, em janeiro de 2013, durante uma visita de Lula patrocinada pela Odebrecht e seguida pela concessão de vultosa linha de financiamento do BNDES. A Internacional dos negócios expandiu-se em países sob governos “progressistas”, um adjetivo com dúbios significados políticos. Na América Latina, apoiou-se nos ombros do chavismo, do kirchnerismo e do castrismo, mas estabeleceu laços com líderes populistas como Ollanta Humala, do Peru; Mauricio Funes, de El Salvador; e o próprio Medina. Na África, ligou-se ao ditador angolano José Eduardo dos Santos, do MPLA, presidente desde 1979, que converteu os processos eleitorais em farsas macabras e comanda um dos regimes mais corruptos do mundo.

Tudo começou durante os mandatos de Lula, mas prosseguiu sob Dilma Rousseff. Bombado por multibilionárias transferências de recursos oriundos da emissão de dívida pública, o BNDES lançou-se numa escalada de financiamentos no exterior. A Odebrecht, a maior beneficiária deles, obteve cerca de US$ 8 bilhões. Dias atrás, na esteira do depoimento de Lula, o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, disse que será preciso “dialogar com o povo brasileiro” para “explicar como são feitas as palestras, em que países aconteceram”. Há muito a explicar, mas inexiste mistério sobre os países selecionados: em geral, coincidem com empreendimentos da Odebrecht subsidiados pelo BNDES.

Lula deixou a Presidência, mas não o poder, o que pode ser verificado pelas quedas sucessivas dos ministros Aloizio Mercadante, Joaquim Levy e José Eduardo Cardozo. O Instituto Lula e a empresa que agencia as palestras do ex-presidente receberam R$ 56 milhões em quatro anos. Lula tornou-se, ao lado de Bill Clinton, o palestrante mais caro do planeta. Sem o BNDES, tais feitos seriam impossíveis. Luciano Coutinho, presidente do banco público, deveria “explicar” ao “povo brasileiro” os critérios de seleção dos países e empreiteiras agraciados por empréstimos subsidiados. Até hoje, ele proferiu platitudes sobre o estímulo a negócios de empresas brasileiras no exterior, mas nunca enfrentou a questão do custo de oportunidade desses financiamentos. Num país tão carente em infraestruturas e saneamento básico como o Brasil, falta uma justificativa plausível para o direcionamento de capitais escassos ao metrô de Caracas, ao viaduto monumental do Panamá, ao Porto de Mariel ou às múltiplas obras do regime cleptocrático angolano.

A ciranda financeira no duto que interliga o BNDES, a Odebrecht e o Instituto Lula seria suficiente, num país sério, para destruir a carreira política de Lula e ensejar processos judiciais devastadores. Tudo se complica com as evidências de que, muitas vezes, o triângulo transforma-se em retângulo pela adição dos serviços de João Santana, proprietário de uma empresa de marketing político que já confessou operar caixa dois nas suas aventuras internacionais. As excessivas coincidências sugerem que a Internacional lulista, como sua predecessora comunista, organiza-se sob a égide do “centralismo democrático”.

Num país sério, os pedalinhos, esses singelos presentes aos netinhos de Lula, poderiam ser ignorados por policiais, procuradores e juízes. Mas, no Brasil, onde o “governo popular” dedicou-se à modernização das mais tradicionais práticas patrimonialistas, a Polícia Federal tinha o dever de formular as perguntas que provocaram a indignação de Lula. Os pedalinhos não são patrimônios, mas indícios. Seguindo as delicadas ondulações causadas pelo movimento deles, chegamos a um projeto internacional que associa poder e dinheiro: a geopolítica do lulismo.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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