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A verdade e a desonestidade estão frequentemente entrelaçadas nas redes sociais. Há alguns meses, no contexto americano, o episódio de um podcast abalou muitos artistas e formadores de opinião. Refiro-me à entrevista de Katt Williams no Club Shay Shay, que alcançou mais de 80 milhões de visualizações – uma das mais acessadas de todos os tempos. A razão para tamanha repercussão é que Williams decidiu fazer algo muito inconveniente para o show business: falar a verdade. Ele expressou exatamente aquilo que pensa e viveu em sua carreira como comediante, diretor e ator em Hollywood. Falou sem filtros sobre inúmeros problemas e situações que afetam todo o meio artístico.
Em dado momento, Williams falou algo que me chamou a atenção ao explicar o comportamento das celebridades e suas posições políticas: "There’s God’s side and there’s the other side". Essa frase, simples em sua formulação, mas imensa em significado, resume uma verdade essencial que muitos tentam ignorar: a luta de nossas vidas não é entre ideologias, movimentos culturais ou correntes de opinião. A verdadeira batalha é entre aqueles que buscam a verdade – o lado de Deus – e aqueles que, por conveniência ou ganância, preferem a manipulação e o engano.
Ao dizer isso, Katt Williams confronta o espectador com uma escolha. Ele se recusa a entrar no jogo ideológico que tenta pintar a realidade de preto e branco, como se não houvesse sempre nuances a serem consideradas. Sua mensagem é clara: existem verdades inegáveis, e a divisão mais importante não é entre esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, mas entre o que é verdade e o que não é.
A importância desse podcast reside, sobretudo, no contexto cultural em que ele se insere. Williams traz à tona a crítica a uma cultura que sustenta o engano como prática aceitável. Com isso, desmonta a ilusão de que "há um movimento que precisa ser protegido": pelo contrário, afirma a necessidade de lealdade à verdade, acima de qualquer ideologia.
O antídoto contra o sofismo cultural é de ordem ultrapessoal. Somente a honestidade interior profunda pode combater esse clima de desonestidade que impera à nossa volta
Esse tipo de discurso ressoa profundamente em tempos de confusão moral e desorientação. Em meio à superficialidade que domina as redes sociais, a mensagem de Williams trouxe uma âncora de lucidez. Ele nos convida a refletir sobre as escolhas que fazemos diariamente nas redes sociais, sobre a quem damos nossa atenção e, em última instância, sobre quem permitimos influenciar nossas vidas.
E não há nada de novo nessa batalha. Onde quer que exista a procura pelo conhecimento, haverá também uma miríade de charlatões e aproveitadores. Sempre que houver pessoas dedicadas ao estudo e à compreensão da realidade, haverá também aqueles que se aproveitam do clima e do ambiente criados pelos estudiosos genuínos para obter ganhos pessoais de maneira intelectualmente desonesta. Esse é um dado da realidade que não se escapa.
Paradoxalmente, a figura do desonesto serve de contraponto ao pensador sério que, analisando os erros dos seus surrupiadores, consegue dialeticamente entender o funcionamento da realidade, do homem, da sociedade etc. Na contraposição entre o charlatão e o honesto, descobre-se a ordem das coisas. Pela sua presença perene, essa figura surrupiadora está sacramentada desde a Grécia antiga na pessoa do sofista.
O sofista tem um papel central na filosofia. Surgindo como uma espécie de contrapeso ao pensamento filosófico genuíno, os sofistas eram conhecidos por sua habilidade de manipular a retórica para persuadir o público, sem necessariamente buscar a verdade. Apesar de nossa ânsia em crer que sempre vivemos algo novo, no Brasil de hoje a situação não é muito diferente.
Através da internet e, principalmente, das redes sociais criou-se um novo ambiente de discussão onde novas figuras procuram analisar e opinar sobre o mundo. A figura do sofista ressurge também nas redes sociais, com influenciadores e formadores de opinião que dominam os discursos, mas muitas vezes sem compromisso real com a verdade ou o bem comum. Estamos diante de um novo cenário onde opera o velho hábito. A sofisticação dos discursos é utilizada para fins comerciais e pessoais através de poderosas ferramentas de marketing e persuasão, transformando as redes em um campo de batalha pela atenção e pela influência, mas quase nunca pela verdade.
No início da filosofia, com Sócrates, Platão e Aristóteles, o sofista já era visto como alguém que, apesar de estar envolvido nos debates filosóficos, se diferenciava radicalmente do filósofo. Enquanto o filósofo buscava a verdade, o sofista tinha outros objetivos manipulando a percepção do público para convencê-lo a favor ou contra determinada causa ou objetivo específico. Platão descreve, em vários dos diálogos de Sócrates, a diferença abismal entre o filósofo e o sofista. O sofista não se interessa pela verdade dos conceitos, mas sim pela eficácia de seus argumentos e pela capacidade de persuadir.
Para analisarmos as características gerais do sofista, iremos nos valer da extensa Introdução ao Movimento Sofista escrita por Edson Bini para as edições dos Diálogos de Platão publicados pela editora Edipro. Adaptando ao contexto contemporâneo, podemos identificar cinco características centrais do sofista. Esses traços se revelam fundamentais para entender o modus operandi dos influenciadores atuais e compreender os traços comuns entre eles e os retóricos da antiguidade.
O primeiro deles é o domínio da retórica. O sofista é, antes de tudo, um mestre na arte de falar. Ele domina a retórica e a utiliza com maestria para convencer o público. Em Atenas, os sofistas eram contratados por jovens que aspiravam a cargos públicos, aprendendo com eles a manipular discursos para conquistar a opinião do público. No contexto atual, esse domínio é facilmente identificado em influenciadores que vendem cursos, formações ou ideias sem um compromisso claro com a verdade. O uso da palavra é voltado para persuadir e ganhar seguidores, não para promover uma reflexão genuína.
Outro traço é o ganho financeiro. Os sofistas, na antiguidade, eram conhecidos por serem bem remunerados. Eles formavam turmas para realizar cursos, especialmente para jovens, onde prometiam educá-los para serem grandes figuras públicas. Essa promessa dava ao sofista certo prestígio. Eram bem recebidos nas casas de políticos e outras figuras importantes na sociedade, justamente por serem capazes de convencer o público de sua própria importância. O ganho financeiro e o status social são de grande importância para o sofista. Qualquer semelhança com uma penca de influenciadores do marketing digital brasileiro não é mera coincidência.
O pragmatismo excessivo é outra característica do sofista. O sofista é extremamente pragmático, preocupando-se mais com o que é eficaz do que com o que é correto ou verdadeiro. Ele vê o público como um meio para atingir seus próprios objetivos. O sofista precisa dominar a linguagem para que ela funcione como ferramenta de persuasão. A eficácia e a praticidade são essenciais para ele. Hoje em dia, esse pragmatismo se revela de várias formas nas redes sociais, desde a forma como os influenciadores apresentam suas vidas "perfeitas" até as estratégias utilizadas para vender cursos, produtos ou ideologias. A ênfase na qualidade prática dos seus ensinos (‘fique rico rápido’, ‘aumente seu faturamento’, ‘ganhe mais clientes’) é outro traço próprio do enganador.
Há ainda o desinteresse pela construção de uma obra duradoura: Ao contrário dos grandes filósofos que construíram obras duradouras, os sofistas têm pouca ou nenhuma preocupação em deixar um legado intelectual sólido. Hoje, muitos influenciadores produzem conteúdos descartáveis, projetados para o consumo rápido e imediato, sem qualquer intenção de contribuir para um debate mais profundo e duradouro. Essa falta de comprometimento com uma obra é característica de uma mentalidade focada no curto prazo, no impacto imediato e, muitas vezes, superficial. Uma característica dos sofistas da antiguidade é que eles não tinham preocupação em, de fato, registrar o seu trabalho. Isso pode ser aplicado diretamente aos sofistas modernos, cujos discursos raramente são projetados para durar além de um ciclo de popularidade.
Por fim, temos a desonestidade intelectual. A quinta característica, e talvez a mais importante, característica do sofista é a desonestidade intelectual. O sofista é desonesto consigo mesmo e com os outros. Ele manipula o discurso para se beneficiar, sem se preocupar em ferir a verdade. Esse é o traço mais perigoso, pois a desonestidade intelectual contamina todo o discurso público, criando um ambiente onde a verdade se torna secundária ou até irrelevante.
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Somadas essas características e permitindo que milhões de pessoas sejam influenciadas por esse comportamento, naturalmente cria-se o fenômeno do sofismo cultural. Ou seja, propaga-se um ambiente de desonestidade generalizada, onde mentira, a desordem moral e até mesmo o crime se tornam mais aceitáveis. A consequência desse clima é a degradação de todo discurso público. E essa desonestidade intelectual, que começa de forma sutil, pode levar a uma aceitação mais ampla de comportamentos moralmente reprováveis. “E quem é injusto nas coisas pequenas o será também nas grandes.” (Lucas 16:10)
Não há exatamente um crime na atitude do sofista. Eventualmente, quando agravada a mentira ao ponto de causar danos mais evidentes, talvez seja possível tipificar a atuação do mentiroso como crime. São os casos de falsidade ideológica, estelionato, fraude, etc. Porém, esses crimes só podem acontecer em grande escala se aceitamos previamente que a mentira, a meia-verdade e a enganação se perpetuem nos discursos públicos.
O problema central é que essa postura desonesta permite a criação de um ambiente de permissividade, onde o crime e a imoralidade se tornam possíveis. Esse "sofismo cultural" é a verdadeira raiz de muitos dos problemas que enfrentamos hoje, especialmente na maneira como consumimos e espalhamos informações.
O antídoto contra o sofismo cultural é de ordem ultrapessoal. Somente a honestidade interior profunda pode combater esse clima de desonestidade que impera à nossa volta. Na Igreja Católica, por exemplo, temos o sacramento da confissão que é um instrumento fundamental para a aquisição da honestidade para consigo mesmo. O exame de consciência, aliado à prática sacramental da confissão, nos ajuda a confrontar nossas falhas e a reconhecer onde estamos sendo desonestos conosco mesmos. Essa prática, além de nos limpar espiritualmente, nos dá ferramentas para resistir às tentações do sofismo.
O exemplo de Santo Agostinho em suas Confissões é crucial aqui. Ele nos mostra a importância da sinceridade consigo mesmo. Essa é a chave para resistir à influência dos sofistas e para viver de acordo com a verdade. A filosofia cristã nos chama a essa busca incessante pela verdade e a tradição da Igreja nos oferece os meios para mantermos nossa honestidade interior. Que possamos, portanto, cultivar a honestidade intelectual, discernir com clareza quem está ao serviço da verdade e rejeitar aqueles que se entregam ao sofismo e à mentira. Essa última nós já sabemos quem é o pai.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



