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A gremista Patrícia Moreira Silva foi maculada pelos moralistas com a marca de Caim. E, para compreender um pouco do que se passa nesse drama kafkiano, é preciso, antes de tudo, suspender as típicas chaves de interpretação cultural "esquerda" ou "direita", e "conservadores" ou "progressistas". Nesse caso concreto, as nossas fantasias ideológicas já não funcionam como critério de julgamento.

Quando deparamo-nos com a notícia de que "torcedora do Grêmio xinga goleiro de macaco", nossa primeira atitude mental implica atacar esquemas ideológicos contrários ao nosso. "Eu, de esquerda, jamais cometeria tal atitude preconceituosa, sou imune a esse tipo de discriminação. Tudo o que há de ruim, bárbaro e torpe no mundo não passa de um ‘câncer’: a direita."

Quando deparamo-nos com a notícia de que "casa da torcedora gremista que xingou Aranha é incendiada em Porto Alegre", nossa primeira atitude mental implica atacar esquemas ideológicos contrários ao nosso. "Eu, de direita, jamais cometeria tal barbárie, pois acredito piamente na força da justiça. Tudo o que há de ruim, bárbaro e torpe no mundo não passa de um ‘câncer’: a esquerda."

Torcedora do Grêmio xinga goleiro de macaco; logo, "o Brasil é racista". Casa da torcedora do Grêmio é incendiada; logo, "a esquerda quer implementar uma ditadura do politicamente correto".

É relativamente fácil se esquivar da responsabilidade de certos juízos atribuindo a culpa ao "outro". Munidos dessas fórmulas simples, muitos moralistas – de direita ou de esquerda – buscam resolver problemas complexos com juízos edificantes. O moralista constrói o mundo perfeito à sua própria imagem e semelhança e busca colocá-lo em prática. A imaginação tem o poder de reduzir a complexidade dos fatos a esquemas pretensiosamente unívocos: "a culpa sempre é do outro". "Joga pedra na Geni!" – os moralistas são os que disputam para saber quem atirou a primeira pedra.

De todo modo, o primeiro grande responsável pelo lamentável episódio não é outro senão nossos construtores de fantasias na imprensa (já chamada de "quarto poder"). Se o poder do imaginário corrompe, então o poder de construir imaginários inconsequentes corrompe inconsequentemente. Há formadores de opinião que são peritos em formar também o tribunal e os juízes.

O efeito no imaginário produzido pela repetição contínua da imagem em slow motion da garota gritando "macaco" não tem limites, e as redes sociais o replicaram ad nauseam. Embora outras pessoas, inclusive negras, tivessem chamado o goleiro de "macaco", a imagem fixada no imaginário dos moralistas será sempre a dessa garota. Os editores do vídeo não fizeram uma "denúncia", eles produziram um bode expiatório. Patrícia Moreira já não é mais "alguém" que responderá diante da balança da Justiça. Ela foi despersonalizada pela imaginação moralista.

Quem tem de avaliar se houve crime não pode se submeter ao fluxo dessa imaginação moralista. Ninguém pode ser acusado, julgado e penalizado a partir de uma mera "impressão" e "senso de justiça". A Justiça não pode cair na tentação dos moralistas com essas ilusórias acusações. E a vagueza desse tipo de julgamento nunca resolverá o problema efetivo do racismo no Brasil; pelo contrário, só o intensifica.

Francisco Razzo é mestre em Filosofia pela PUC-SP.

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