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Dificílimo sintetizar inefáveis aragens da alma. Svetlana Aleksiévitch logrou síntese em mosaico de entrevistas e comentários reunidos no livro O fim do Homem Soviético. Numa delas, feita em 1992, dialoga com Timerian Zinátov, veterano da Segunda Guerra, e ele, ainda temeroso de incidir em crimideia, diz: “é de chorar essa aposentadoria (...) Na televisão mostram como os alemães vivem. Muito bem! Os vencidos vivem 100 vezes melhor do que os vencedores”. O velhinho arenga reclamando do desprezo dos jovens russos aos heróis da pátria, vistos como reles soviéticos mutilados.

Diz-se que os amputados sentem a dor do membro fantasma. A Rússia de 2017 olha para si como se fosse a União Soviética amputada e padece de dor. Mãe Rússia que arruma o quarto de filhos que já não são seus. A sólida união indestrutível das livres repúblicas desfez-se no ar.

Da taiga ao Báltico, do Ártico ao Mar Negro. Império relevante a ponto de dividir o mundo entre aliados e adversários. A conjunção imprevista entre as ideias de Marx e a sociedade feudal russa gerou fenômeno político que definiu o século 20. Subitamente, quase sem sangue, o gigante murchou e passou à condição de anão. O decremento de status político causa intenso sofrimento.

A Rússia de 2017 olha para si como se fosse a União Soviética amputada e padece de dor

A União Soviética evaporou como bolha de sabão porque havia sobrevivido a sua época. A gerontocracia entrou em desacordo com o tempo, sem ver que a lápide da utopia comunista foi plantada em 1956, no discurso de Kruschev acerca da sanguinolência e ineficiência do caudilho Stalin. Ali o sonho acabou. Em 1991, quando o estandarte vermelho foi arriado pela última vez, existia apenas zumbi pedindo inumação. A alma havia muito abandonara aquele corpo.

Sucesso coletivo por 70 anos. Fracasso individual por gerações. Edificar império em tão pouco tempo põe qualquer povo no rol dos memoráveis. Vencer o front leste do nazismo foi épico. E os indivíduos? Os derrotados (alemães) passaram a viver com liberdade, roupas, comida, Mercedes-Benz. Ao homem soviético, mutilado física e psiquicamente pelas guerras, restou tristeza, ebriez, famílias dilaceradas, pobreza, clausura política.

Pano rápido e passa-se a outra cena: um homem de ventre avantajado jaz em cruz enquanto um jovem brande pistola na mão direita e gesticula com a esquerda, em modo professoral. O embaixador russo na Turquia foi morto por militante de causa incompreensível, ligada à presença militar russa na babélica Síria.

O atentado não tem potencial conflagrativo similar ao homicídio de Franz Ferdinand, estopim da Primeira Guerra Mundial. A guerra na Síria a Rússia já ganhou, mantendo o governo Assad no poder. O corpo estendido no chão sinaliza seu retorno ao palco dos Estados que têm zonas de influência e intervenção além das fronteiras físicas. Mãe de braços de ferro, preme seus filhos para manter a ordem que lhe convém.

A diplomacia mitigou ruídos nas relações turco-russas, esvaziando os efeitos pretendidos pelos terroristas. Reduziu o fato a incidente desagradável com saldo negativo da morte do algoz e da vítima. Cada um deles com direito a juras de recordações eternas e panteão de herói.

A dor do finado Andrei Karlov e família é, no imaginário das estepes, inevitável como a aurora e tão casual quanto o acidente aéreo que vitimou o coral que cantaria no réveillon no quartel de Latakia, na Síria. O etos pungente da Rússia detrata carpideiras e glorifica o sacrifício. Esfinge indecifrável para o modus vivendi do Ocidente.

Friedmann Wendpap é doutorando em Direito Internacional Público pela Universidade de Lisboa.
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