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Superdotação: quimeras, desafios e caminhos para uma educação que transforme aptidões em talentos

(Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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O debate sobre superdotação na educação brasileira ainda é marcado por equívocos, invisibilidade e práticas pedagógicas que pouco dialogam com a diversidade de perfis entre alunos com altas habilidades. Para além dos estereótipos de gênios precoces que revolucionam a ciência ou a arte, a superdotação precisa ser compreendida como um fenômeno humano complexo, que exige tanto rigor conceitual quanto sensibilidade educacional.

Um dos maiores entraves é a crença de que superdotados formam um grupo homogêneo. Nada mais distante da realidade. Cada criança ou adolescente com altas habilidades apresenta singularidades que não se encaixam em estereótipos fixos. Reduzir a superdotação a casos excepcionais de genialidade é como observar apenas os aviões que voltaram de uma missão, sem analisar os motivos daqueles que ficaram pelo caminho.

É também como avaliar uma árvore apenas pelos frutos maduros, sem perceber as raízes que sustentam a vida – invisibilizando processos silenciosos, mas fundamentais para o crescimento. Ou como olhar uma cidade iluminada à noite e ignorar a imensidão de casas sem energia, que também fazem parte do cenário e revelam desigualdades. É como medir a qualidade de um rio apenas pela superfície límpida em alguns trechos, negligenciando as correntes subterrâneas que determinam sua força e vitalidade. Essas metáforas evidenciam como a invisibilidade de vulnerabilidades e necessidades menos óbvias compromete a inclusão.

Outro mito recorrente é imaginar que a superdotação se manifesta apenas em grandes feitos. Uma criança não precisa compor como Mozart ou desenvolver teorias como Einstein para ser reconhecida. Muitas vezes, o que se observa são talentos específicos, que não esgotam o potencial do sujeito.

A história está cheia de exemplos de talentos que se manifestaram em áreas específicas ou de formas sutis, sem necessariamente atingir fama universal. Hypatia de Alexandria destacou-se em matemática e filosofia em uma época em que mulheres sequer tinham espaço nas ciências. Clara Schumann foi uma das maiores pianistas de seu tempo, mas permaneceu por muito tempo à sombra do marido. Srinivasa Ramanujan produziu avanços extraordinários em matemática sem ter acesso a uma educação formal estruturada.

Leonardo da Vinci, embora lembrado como gênio universal, revela que a superdotação pode florescer em múltiplas curiosidades e investigações que nem sempre resultam em feitos acabados. Blaise Pascal, ainda criança, transitava entre matemática, física e filosofia, sem que seu talento fosse reduzido a um único campo. Esses exemplos reforçam que a superdotação pode se revelar de formas diversas e não precisa, necessariamente, ser comparada a gênios universais para ser valorizada.

Da mesma forma, exemplos cotidianos ajudam a ampliar o alcance da reflexão: é como valorizar apenas os atletas que conquistam medalhas olímpicas, ignorando aqueles que enfrentam jornadas árduas de treino e superação invisível. Ou premiar apenas os alunos que tiram as maiores notas em matemática, sem perceber os que demonstram criatividade, liderança ou talento artístico. É como destacar o funcionário que fecha grandes contratos, sem reconhecer quem garante que a equipe funcione nos bastidores. Na saúde, é como aplaudir apenas quem corre maratonas, sem valorizar quem luta diariamente contra limitações para manter autocuidado. E na vida social, é como enxergar apenas quem fala mais alto nas reuniões, esquecendo que muitas vezes as ideias mais transformadoras vêm de quem observa em silêncio.

Nesse cenário, as contribuições de Françoys Gagné são fundamentais. Seu Modelo Diferenciado de Dotação e Talento (DMGT) distingue entre dotes (aptidões naturais) e talentos (competências desenvolvidas). Segundo ele, “os talentos emergem do desenvolvimento sistemático das aptidões, sob a influência de catalisadores intrapessoais e ambientais”.

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Ou seja, não basta reconhecer a existência de uma habilidade inata: é preciso oferecer oportunidades, apoio e condições ambientais que favoreçam seu florescimento. No Brasil, onde a escola ainda tende a padronizar trajetórias, essa visão traz implicações práticas. Reconhecer a multiplicidade de perfis e trajetórias significa criar percursos educativos que transformem aptidões em talentos, valorizando tanto a excelência acadêmica quanto habilidades artísticas, socioemocionais e criativas.

Complementarmente, ganha destaque o conceito de flow, de Mihály Csíkszentmihályi. Trata-se de um estado de imersão profunda em uma atividade, marcado pelo equilíbrio entre desafio e habilidade. Para alunos superdotados, frequentemente desmotivados por tarefas pouco estimulantes, o flow pode ser decisivo para manter engajamento, bem-estar e criatividade.

Práticas pedagógicas baseadas em projetos (PBL) ou enriquecimento curricular são caminhos eficazes para favorecer esse estado. Quando uma escola permite que o aluno investigue um problema real, crie protótipos ou colabore em desafios interdisciplinares, aumenta-se a chance de atingir o flow. Gagné (2008) reforça essa necessidade ao destacar que os catalisadores ambientais incluem não apenas professores preparados, mas também metodologias que encorajam motivação intrínseca e sentido para a aprendizagem.

A invisibilidade da superdotação no Brasil é gritante. Estima-se que cerca de 3% da população apresente altas habilidades. No universo da educação básica, com 47 milhões de alunos registrados no Educacenso de 2023, esperaríamos mais de 1,4 milhão de estudantes identificados. Contudo, apenas 38 mil foram cadastrados – menos de 3% do esperado. Isso revela uma lacuna alarmante de quase 1,38 milhão de crianças sem reconhecimento ou apoio adequado.

Por trás desses números, há histórias de famílias que lutam por visibilidade e inclusão. Casos como o de Theo e Maya, irmãos que demonstraram desde cedo aprendizagens avançadas e curiosidade insaciável, ilustram esse cenário. Mesmo antes de diagnósticos oficiais, seus pais buscaram grupos de apoio, cursos e informações sobre legislação, resultando no ingresso precoce das crianças na Mensa. Esse reconhecimento, mais do que um título, abriu acesso a redes de suporte e recursos educacionais, fundamentais para seu desenvolvimento.

Essas trajetórias mostram que a superdotação não pode ser reduzida a desempenho escolar acima da média. Trata-se de uma condição neurodivergente, que afeta dimensões cognitivas, emocionais e sociais, e demanda cuidado educacional personalizado.

Apesar dos avanços legais, a realidade brasileira ainda é marcada por lacunas. Documentos como o Parecer CNE/CEB 17/2001 e a Nota Técnica  4/2014 da SECADI/MEC reconhecem o direito dos alunos superdotados a estratégias específicas, como aceleração e enriquecimento curricular. Também reforçam que o Plano de Atendimento Educacional Especializado (AEE) não pode depender de laudo médico, pois é uma medida pedagógica, não clínica.

Boas práticas nacionais oferecem inspiração. Os Núcleos de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S), embora limitados em alcance, fornecem formação docente e materiais de apoio. Centros como o CEDET, em Lavras (MG), apresentam experiências bem-sucedidas ao integrar escola, família e atendimento especializado em planos personalizados.

Internacionalmente, modelos como os magnet schools norte-americanos ou os programas de enriquecimento de Hong Kong mostram que é possível articular políticas públicas com inovação pedagógica em larga escala. Além disso, é preciso combater a chamada “discriminação da excelência”. Muitas vezes, estudantes superdotados têm seus méritos ignorados ou até vistos com desconfiança. Como lembra Gagné (2004), “ignorar os talentos é desperdiçar recursos humanos que poderiam contribuir para o bem comum”.

Educar superdotados não é apenas identificá-los, mas respeitar sua singularidade. Isso implica oferecer ambientes desafiadores e colaborativos, nos quais inteligência, criatividade e sensibilidade caminhem juntas. Mais do que políticas no papel, é preciso prática pedagógica comprometida com a diversidade cognitiva e com a dignidade de cada estudante.

A superdotação não pode ser vista como exceção, mas como parte da pluralidade humana. Reconhecê-la é um ato de justiça educacional e social. Afinal, quando a escola acolhe a diferença como riqueza, todos ganham: a criança, a família, a comunidade e o país. Como bem sintetiza Gagné (2010), “a verdadeira equidade não é tratar todos de forma igual, mas oferecer a cada um o que precisa para florescer”.

Lílian Schreiner-Módolo é doutora e mestra pela Universidade de São Paulo, com pós em Docência do Ensino Superior pela Laureate e graduação em Industrial Design pela UFAM. Hoje, cursa outra graduação em Psicologia. É mãe de dois superdotados e, junto com eles, é membro da Mensa.

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