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Imagine a seguinte cena: você e os seus filhos estão sentados à grama no sítio em que vivem no município de Estância, em Sergipe. Este é mais um dia comum na sua rotina, as crianças tiveram aula de português e matemática pela manhã, brincaram ao ar livre, almoçaram, tiraram uma soneca e agora é a hora da leitura em voz alta. E a baleia abriu a boca e engoliu Jonas! Você usa toda a sua habilidade adquirida com a maternidade para interpretar os personagens com vozes femininas e masculinas, fazer caras e bocas e soltar a imaginação das crianças quando, de repente, precisa interromper a concentração dos pequenos para abrir a cancela da propriedade. É que também é a hora das mangabeiras catarem (e colherem!) os frutos das suas árvores. Afinal de contas, após serem reconhecidas como grupo culturalmente diferenciado (povo e comunidade tradicional) pela Lei estadual 7.082/2010 – por um ex-governador cujo partido é abertamente contra o ensino domiciliar – não tardará (se as coisas continuarem como estão) até a Assembleia Legislativa aprovar uma lei permitindo o acesso à propriedade privada.
Mas será que um projeto assim, permitindo acesso à propriedade privada, passaria na Comissão de Constituição e Justiça? E mesmo que passasse, será que a ALESE aprovaria? E o governador, não vetaria um projeto desses com base na inconstitucionalidade, na ilegalidade ou por ser contrário ao interesse público? Devo te advertir que estamos no Brasil. E por aqui, nem tudo são flores e granulados...
Sei que as coisas não andam bem no Brasil e que talvez, na novilíngua, eu deva dizer que andam às mil maravilhas, mas é importante que estejamos informados e que tenhamos algum repertório de abusos guardados no bolso
De acordo com o art. 3º, I, do Decreto 6.040/2007, os povos e as comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e que possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Para que tenham acesso pleno aos direitos civis individuais e coletivos, basta que tais grupos se identifiquem e preencham as características acima.
Em 2016, o prefeito de Estância sancionou a Lei 1.846, aprovada pela Câmara Municipal, que proíbe, no art. 1º, o corte e a derrubada de mangabeira nos limites do município para qualquer fim. Tal crime sujeita o infrator a uma multa imposta no valor de R$ 1.500 por árvore, valor duplicado no caso de reincidência, além de outras penas previstas na legislação ambiental, conforme o art. 4º.
A mobilização do grupo foi iniciada em 2007 com a realização do I Encontro das Catadoras de Mangaba de Sergipe, informação retirada do documento 192 (ISSN 1678-1953) da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) intitulado “As Catadoras de Mangaba em Defesa dos seus Modos de Vida”. A presidente do Movimento das Catadoras de Mangaba de Sergipe (MCM), Alícia Santana Salvador, afirmou na época da elaboração do documento, no II Encontro, em 2015, estar cada vez mais difícil catar os frutos em razão da oposição dos donos das propriedades e terras.
Numa carta aberta, destinada ao Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) em 2007, o MCM reivindica, dentre outras coisas, a garantia de livre acesso às áreas de mangabeira, por meio da compra de áreas nativas pelo governo e do direito a catarem mangaba onde sempre cataram, mesmo em propriedades privadas; a proibição de corte e queima das plantas; e a garantia de salário na entressafra da mangaba (período de defeso), p. 19.
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Eu vejo a situação da seguinte forma: longe de maiores oportunidades de emprego proporcionados pela capital, diante dos afazeres domésticos de lares mais afastados do centro municipal, donas de casa passaram a se reunir à tarde para catar e colher as frutas da região presentes em abundância e em terras sem proprietários. Algum tempo depois, percebendo que poderiam vender os frutos para terem uma renda extra, transformaram o que era lazer em trabalho. Com a observação e a experiência na cata e na coleta, puderam aprender mais sobre o ciclo de vida dos frutos.
Talvez, sem perspectiva ou interesse em trabalhos externos ou distantes de casa, passaram o ofício feminino de geração em geração. Isso não significa que as catadoras de mangaba possuam uma organização social que dependa exclusivamente dos frutos para a sua reprodução cultural. Tal organização laboral ocorreria com qualquer outro fruto ou ofício.
O recurso natural aqui, a mangaba, não é condição para a reprodução cultural, social, econômica ou ancestral deste grupo. Não há como equiparar uma organização social de indígenas com uma organização social de mulheres que catam mangabas, mas que poderiam colher mangas, goiabas, laranjas, café; que poderiam fazer rendas, bordados e costura; que poderiam fazer artesanato ou pescar peixe e camarão junto aos esposos.
Eu sei que estamos acostumados aos abusos de direitos, incluindo o de propriedade, e ao desrespeito ao ordenamento jurídico brasileiro. Talvez o que eu esteja contando nem escandalize mais. Talvez a sua casca tenha engrossado após a pandemia de SARS-COV-2 quando alguns governadores e prefeitos se fantasiaram de soberanos e comandaram seus reinos ao bel prazer. Sei que as coisas não andam bem no Brasil e que talvez, na novilíngua, eu deva dizer que andam às mil maravilhas, mas é importante que estejamos informados e que tenhamos algum repertório de abusos guardados no bolso, para sabermos o que esperar de situações similares e conseguirmos prever o que vem a seguir.
Isadora Palanca é escritora, ghostwriter e revisora, com formação em Direito, mediação e especialização em Direito e Processo Civil. É autora dos livros “Ensino domiciliar na política e no direito”, “Regulamentações do ensino domiciliar no mundo” e “AFESC: em defesa do ensino domiciliar”, e procura famílias que pratiquem homeschooling fora do Brasil para o próximo livro.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



