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O Air Force One pousou no Alasca como anúncio de espetáculo cuidadosamente encenado. Caças e bombardeiros recortaram o céu em manobras que lembravam uma coreografia militar; apertos de mão e declarações ritualizadas compuseram a cena pública do encontro.
Por trás das imagens, porém, corre outra narrativa: a disputa por elementos minerais que moldam capacidades tecnológicas e definem vantagens estratégicas na nova ordem internacional.
Neodímio, disprósio e lantânio — integrantes do grupo conhecido como terras raras — tornaram-se insumos essenciais para turbinas eólicas, motores elétricos, ímãs de alto desempenho, sistemas de radar e diversos componentes da microeletrônica.
A posse desses depósitos assegura não apenas vantagem industrial, mas também margem de manobra em setores de defesa e infraestrutura crítica. Assim, parte da geopolítica contemporânea deslocou-se para o subsolo, onde jazem recursos capazes de influenciar alianças e limitar opções políticas.
Relatórios internacionais e estudos setoriais documentam a concentração das etapas de extração e beneficiamento em poucos atores, com efeitos diretos sobre oferta e preço. Essa assimetria converte depósitos emergentes em alvos estratégicos e redefine o valor de territórios antes negligenciados.
Países com reservas exploráveis — do Vietnã a áreas específicas da Ucrânia — ganham relevo quando o mapa dos suprimentos é redesenhado; o Brasil, por sua diversidade geológica, também figura como ator potencial, desde que transforme reservas brutas em capacidade industrial.
É preciso distinguir recursos geológicos de capacidade de transformação: ter minério no subsolo não equivale automaticamente a liderança produtiva
A conversão de jazidas em produtos de maior valor exige mapeamento detalhado, tecnologia de processamento, infraestrutura logística, formação de mão de obra e políticas industriais que estimulem o beneficiamento doméstico. Sem esses elementos, os ganhos tendem a restringir-se à exportação primária e à exposição a flutuações externas.
A extração de elementos críticos traz impactos socioambientais relevantes quando o licenciamento é frouxo ou a fiscalização insuficiente. Experiências internacionais mostram danos a bacias hidrográficas, solos e comunidades locais em projetos mal geridos.
Portanto, uma estratégia mineral responsável precisa prever licenciamento rigoroso, monitoramento independente e mecanismos efetivos de consulta e compensação — com atenção especial a povos indígenas e comunidades tradicionais — para assegurar legitimidade e sustentabilidade.
A dimensão da segurança adiciona outra camada: depósitos localizados em zonas de tensão ou sob influência externa podem tornar-se instrumentos de coerção ou objetos de conflito.
Proteger interesses estratégicos exige integração entre política externa, defesa e planejamento econômico — não apenas medidas militares, mas políticas de estoques estratégicos, parcerias industriais e diversificação de fornecedores que aumentem a resiliência das cadeias de suprimento.
No plano internacional, reduzir vulnerabilidades passa por combinar diversificação de origens, investimentos em reciclagem e pesquisa em alternativas tecnológicas que diminuam a intensidade do uso de elementos críticos.
Iniciativas de cooperação entre países aliados podem fomentar cadeias regionais de valor agregado, ampliando benefícios locais e amortecendo choques externos. Na América Latina, isso implica alinhar normas, desenvolver capacidade compartilhada de processamento e estimular programas de inovação voltados à agregação de valor.
Para o Brasil, a agenda é tríplice: mapear e caracterizar com precisão os depósitos; promover políticas industriais que viabilizem o beneficiamento nacional e o desenvolvimento tecnológico; e garantir padrões socioambientais robustos, capazes de legitimar projetos e atrair investimentos de qualidade. Sem essa combinação, reservas potenciais tendem a gerar receitas efêmeras e dependência de mercados externos.
O espetáculo diplomático — flashes, discursos e poses — tem função de comunicação, mas, quando as luzes se apagam, o jogo decisivo frequentemente acontece no subsolo: é ali que se define quem dispõe de insumos para energia, mobilidade e defesa.
Se o Brasil pretende converter geologia em vantagem duradoura, deverá agir agora com planejamento técnico, responsabilidade social e visão estratégica, antes que outros ocupem a dianteira quando as câmeras se desligarem.
Carlos Henrique Gileno, doutor em Ciências Sociais, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Unesp, campus de Araraquara, editor-chefe da Revista Sem Aspas e membro da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC). É autor dos livros “Lima Barreto e a condição do negro e do mulato na Primeira República” (2010) e “Perdigão Malheiro e a crise do sistema escravocrata e do Império” (2013).



