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O totalitarismo dos democratas
| Foto: Jon Tyson/Unsplash

Pêsames não consolam ninguém, mesmo que venham de quem acabou de perder todos os entes queridos numa catástrofe. Do mesmo modo, saber que há pelo mundo afora sociedades ditas prósperas e democráticas que vivem situações tão ou mais cabulosas do que a brasileira no tocante à liberdade de expressão e à relativização do Estado de Direito, não ameniza a crise local.

É, no entanto, sempre salutar saber que não estamos sozinhos nesta corrida insana e que, pelo mundo afora, há muita gente quebrando a cabeça para preservar a tão vilipendiada democracia ocidental. Por isso, vale a pena o leitor brasileiro dar uma olhada no último livro publicado pelo jovem pensador canadense Mathieu Boke-Coté, sugestivamente intitulado Le totalitarisme sans Goulag (O totalitarismo sem Gulag, 2023) – ainda sem tradução para o português.

Ao pária não é concedido nem mesmo o direito de se defender, pois tudo que disser será uma prova a mais do fanatismo,

Mathieu Boke-Coté, ainda pouco conhecido no Brasil – um país de editoras majoritariamente monocórdias –,tem se notabilizado por mover uma guerra corajosa contra os excessos da cultura woke; seus livros, sempre detestados pelos que costumam taxar tudo e todos de fascistas, há tempos vêm chamando atenção para o crescente autoritarismo subjacente à cultura do “politicamente correto”, cultura que tomou conta de setores da mídia mainstream, das universidades e, o que é mais preocupante, de parcelas nada desprezíveis dos sistemas judiciais do Ocidente. Este último livro, O totalitarismo sem Gulag, constitui, de certo modo, uma síntese de suas preocupações e advertências.

Lembra-nos Boke-Coté na sua introdução que, há menos de duas décadas atrás, os pensadores que ousavam apontar o caráter intolerante do “politicamente correto” e a ameaça que o seu insidioso avanço significava para as democracias eram ridicularizados e sumariamente taxados de “conspiracionistas” e ultrapassados. Os regimes autoritários, dizia-se então, tinham, ao menos no Ocidente, desaparecido com a queda do muro de Berlim, e os tais comunistas, os partidários dos muitos coletivismos que andavam por aí, tinham morrido ou estavam confinados em parques temáticos ideológicos, como Cuba e Venezuela – parques constantemente visitados pelos bem pensantes do mundo livre, saudosos da sua juventude pretensamente revolucionária.

O objetivo desse círculo vicioso de intolerância e exclusão é um só: calar os opositores, bani-los de uma vez por todas do debate público.

Ledo engano. Ao contrário do que vociferavam esses arrogantes “meninos mimados”, as sociedades livres e democráticas não estavam imunes ao vírus do totalitarismo. É justamente esse processo de recontaminação, acelerado pelos mecanismos de controle desencadeados pela crise do Covid-19 (vigilância eletrônica, restrições de circulação, censura à informação, desqualificação de “dissidentes”, judicialização do cotidiano etc.), que Bock-Coté propõe mapear ao longo do seu livro.

Transitam pelas suas páginas personagens e situações muito bem conhecidas dos brasileiros. De saída, o persistente e constante esforço da grande mídia, de políticos de esquerda, de “bem pensantes” e, sobretudo, de juízes ditos progressistas para agrupar todo e qualquer discurso dissidente sob o rótulo de extrema-direita e vinculá-lo a posturas que, hipoteticamente, ameaçam a democracia, comprometem a inclusão social e minam a mais cara das causas woke: a famigerada diversidade.

Seja em relação aos acontecimentos do presente, seja em relação àqueles do passado, trata-se de convencer o cidadão de que o que ele vê não é o que ele vê.

Uma vez estabelecidas tais associações – à custa da repetição infinita de jargões e estultícias –, está criado o ambiente para transformar os opositores em párias sociais, párias que podem ser perseguidos – por vezes judicialmente –, agredidos, ofendidos e humilhados em praça pública. Ao pária não é concedido nem mesmo o direito de se defender, pois tudo que disser será, aos olhos dos autointitulados antifascistas, uma prova a mais do fanatismo e do radicalismo da tal extrema-direita. O objetivo desse círculo vicioso de intolerância e exclusão é um só: calar os opositores, bani-los de uma vez por todas do debate público, em suma, impor à sociedade a paz dos cemitérios.

Esse peculiar mecanismo de pacificação social lança mão de uma ferramenta poderosa: a mentira, o embuste. Mente-se com um desprendimento de causar inveja aos maiores vigaristas da história. É uma verdadeira máquina de propaganda – que não deixa nada a desejar àquela da antiga União Soviética – interessada em persuadir o cidadão de que o real é negociável, de que os fatos não existem objetivamente – a objetividade é sempre uma ilusão fabricada pela extrema-direita – e de que a realidade pode se adaptar à interpretação mais conveniente ou mais “inclusiva”.

Nem mesmo o passado escapa desse perspectivismo politicamente correto, ao contrário, despudoradamente, fatos e versões sem o menor lastro histórico são criados e impostos goela abaixo da sociedade: atores são apagados ou denegridos, ações heroicas são minimizadas, origens são destorcidas, enfim, lida-se com a matéria histórica como se de uma massa amorfa se tratasse, uma massa passível de se adequar a qualquer forma – por vezes, a mais estúpida e inverossímil que se pode encontrar, afinal, erudição e bom senso não costumam ser o forte de gente que nega sistematicamente o racionalismo ocidental.

Enfim, seja em relação aos acontecimentos do presente, seja em relação àqueles do passado, trata-se sempre de convencer o cidadão comum de que o que ele vê não é o que ele vê, e de que o que ele pensa acerca da sua história e a de seus antepassados não é digno de ser pensado. A cereja do bolo desse exercício de produção de esquizofrênicos sociais são as tais agências de checagem, encarregadas de legitimar a mentira e deslegitimar, sob o rótulo de “fake news”, toda e qualquer tentativa de restituição do senso de realidade.

Por fim, mas não menos importante, a máquina progressista, no seu esforço de implantação da referida paz dos cemitérios, põe em cena, na arena social, os penitentes; são aqueles seres que se arrependeram – ou fingem ter se arrependido – de seus pecados direitistas de outrora e fazem profissão de fé progressista (pedem desculpas, traem os antigos aliados, defendem o que julgavam indefensável, mostram-se mais identitários do que os wokes de primeira hora etc.). A esses, se não titubearem novamente, quase tudo é permitido, até mesmo ostentar algum espanto e indignação com os excessos do wokismo – só não podem mesmo revelar que tudo não passa de uma grande farsa a que foram, para sobreviver socialmente, mesmo que com pouca dignidade, obrigados a aderir.

Eis, em linhas gerais, o quadro cinzento que pinta Bock-Coté; quadro, bem entendido, totalmente inspirado nas sombrias paisagens canadense e francesa.

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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