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A tragédia do caso Léo Lins e a farsa do Estado tutor de consciências

Léo Lins prisão
O humorista Léo Lins. (Foto: Reprodução / YouTube / Léo Lins Oficial)

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O Brasil já foi palco de tragédias maiores, mas poucas tão simbólicas quanto a que se desenrola com a condenação do humorista Léo Lins a oito anos de prisão em regime fechado por fazer piadas. Sim, piadas. Não foi por corrupção, homicídio ou latrocínio. O humorista foi condenado por expressões verbais, satíricas, pronunciadas em um espetáculo de stand-up e compartilhadas em seu canal do YouTube. Junto da pena privativa de liberdade, veio a fatura: multa de R$ 1,4 milhão e indenização de R$ 303 mil por “danos morais coletivos”.

O espetáculo, vale repetir, é de humor – aquela arte que consiste precisamente em exagerar, provocar, perturbar e desconcertar. A comédia, como toda manifestação de pensamento, não é feita somente para agradar; é feita para dizer o que muitos não querem ouvir. E é precisamente aí que mora seu valor. A comédia está proibida no Brasil — e ninguém viu a luz apagar. Não se trata de um excesso ocasional, mas de um sintoma alarmante da época em que vivemos. Uma época em que piadas fora do padrão ideológico vigente são tratadas como delitos graves, imprescritíveis e inafiançáveis. Em que o humor — ferramenta por excelência da crítica e da reflexão — é submetido ao crivo de juízes da moral coletiva.

Importa deixar claro: não se trata de julgar se as piadas de Léo Lins são boas ou ruins, engraçadas ou grosseiras. Trata-se de defender o princípio elementar segundo o qual ninguém pode ser preso por fazer rir — ou por tentar fazê-lo

Um tempo em que a infelicidade de uma frase, o tom incorreto de uma brincadeira ou a ousadia de contrariar o gosto dominante transforma um cidadão em delinquente. Basta que uma frase incomode, que um riso provoque desconforto nos comitês do ressentimento organizado, e já se tem o réu, o crime e a pena. A era dos ofendidos triunfou, e com ela, a nova censura — não aquela tosca, militar, feita de baionetas, mas a mais enganosa: a que se disfarça de civilidade, empatia e inclusão.

Na decisão que condena o comediante Léo Lins, a juíza federal substituta da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo parece ter esquecido um princípio elementar do Direito em qualquer sociedade que ainda conserve alguma réstia de civilização: o de que o magistrado não é censor, não é fiscal de etiqueta, nem guardião do bom gosto. Não o digo eu – disse o então chefe do Judiciário britânico, Lord Harry Woolf, com a elegância de quem compreende os limites do poder: “Os juízes não devem agir como censores ou árbitros do bom gosto”. O Supremo Tribunal Federal, no RHC 134.682/BA(1ª Turma, Edson Fachin), reconheceu o mesmo: ao Estado-Juiz não cabe censurar manifestações por motivos metajurídicos – ou seja, com base em subjetividades morais e sociais que extrapolam os critérios estritamente legais. Deste modo, “eventual infelicidade de declarações e explicitações escapa do espectro de atuação do Estado-Juiz”.

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Mas o que vemos agora é precisamente isso — um Judiciário que abandona seu papel técnico e se converte num comitê de etiqueta moral, julgando não atos, mas humores, intenções e graus de sensibilidade alheia. O gosto dominante virou jurisprudência. E a liberdade de expressão, uma nota de rodapé da sentença.

Importa deixar claro: não se trata de julgar se as piadas de Léo Lins são boas ou ruins, engraçadas ou grosseiras. Trata-se de defender o princípio elementar segundo o qual ninguém pode ser preso por fazer rir — ou por tentar fazê-lo. Uma sociedade que encarcera o comediante está em vias de declarar guerra à liberdade. A mesma liberdade que permite ao parlamentar, ao padre, ao colunista e ao cidadão comum dizerem o que pensam — inclusive aquilo que desagrada, causa resistência ou provoca inquietações. Sem essa liberdade, resta apenas o silêncio imposto pelo medo.

Vivemos a era da judicialização da sensibilidade, em que o sistema de justiça se converte em garantidor de uma promessa tão sedutora quanto totalitária: a promessa de um mundo onde ninguém jamais se sentirá ofendido. Um mundo onde todos terão direito à sua sensibilidade — menos à sua opinião. Nesse cenário, a crítica é tida como ataque, a opinião que desagrada, como violência; a palavra que contraria, como opressão. E assim, num passe de mágica ideológica, o discurso passa a ser julgado não por seus fundamentos, mas por suas repercussões emocionais.

O Estado, ao se tornar juiz do que é incômodo ou não, transforma-se em tutor de consciências. E o tutor, como se sabe, pode punir. Pode reeducar. Pode doutrinar. O que ele não pode é coexistir com a liberdade. Hoje é um humorista. Amanhã será um poeta, um pastor, um jornalista ou você mesmo. Se a régua for a ofensa percebida, não haverá discurso seguro. E se tudo pode ser considerado agressão simbólica, toda fala pode ser silenciada. Aonde o riso não pode ir, a liberdade também não vai.

O que está em jogo aqui, portanto, não é apenas a comédia ou as piadas de Léo Lins. É a própria vitalidade da liberdade de expressão e a integridade do pluralismo de ideias — fundamentos indispensáveis a qualquer sociedade que se pretenda verdadeiramente democrática. Quando o riso é algemado, não é apenas o humor que se cala: é a própria liberdade que se vê ameaçada, enquanto a tirania bate palmas.

André Fagundes é doutorando em Direito Público, mestre em Direito Constitucional, e investigador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É também professor de Liberdade Religiosa e Liberdade de Expressão na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (CEDIRE).

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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