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| Foto: Alejandro Pagni/AFP

Só mesmo Donald Trump poderia me estimular a criar um paralelo entre Franklin Roosevelt e Pennywise, o Palhaço Dançarino.

Foi Roosevelt, é claro, que disse, em sua primeira cerimônia de posse: “A única coisa que precisamos temer é o próprio medo.” Impressionante, o discurso foi feito perante o Congresso, em quatro de março de 1933; vale a pena ser revisitado, e não só pela dignidade da retórica. A mensagem definiu a estratégia com a qual Roosevelt combateria a Grande Depressão; foi pura esperança inspiradora para unir as pessoas e, acima de tudo, garantir à nação que “renasceríamos e prosperaríamos”.

O obstáculo básico a essa recuperação não foi a economia, mas o medo: “O terror sem nome, sem sentido, sem justificativa, que paralisa os esforços necessários para convertermos retirada em avanço.” Ele prossegue, afirmando que a estratégia crucial para dominar esse temor é a sinceridade: “Esta é, acima de tudo, a hora de falar toda a verdade, de maneira franca e corajosa.”

Se, 85 anos depois, você por acaso quiser resumir a presidência de Trump em um símbolo, basta tirar toda a generosidade e sabedoria do discurso de posse de Roosevelt e fazer o contrário.

O pessoal da imprensa dedica horas sem fim a rebater as barragens de dejetos que saem da Casa Branca

A única coisa que Trump tem é o próprio medo.

Ele nos quer temerosos, já que é o medo que nos divide, que nos joga uns contra os outros. Se há alguma coisa franca e corajosa em sua presidência, é a habilidade que Trump tem de tirar mentiras do pó de pirlimpimpim e de marzipã só para nos deixar apavorados – em relação aos imigrantes, aos transgêneros e a nós mesmos.

Não lhe importa que a grande maioria daquilo que ele nos instiga a temer não represente risco nenhum; o que vale é que suas invenções paranoicas consomem toda a nossa atenção e fazem com que nos concentremos, semana após semana, em sua pessoa.

O pessoal da imprensa dedica horas sem fim a rebater as barragens de dejetos que saem da Casa Branca – e, assim, estamos amplificando o ruído que produz, fomentando, mesmo no processo de refutação, o medo que esse homem nutre com tanto desvelo.

Tudo isso torna a cobertura da Casa Branca, de fato, muito difícil. Há pouco tempo, quando a credencial de Jim Acosta foi suspensa, a jornalista britânica Jane Merrick sugeriu um boicote em massa à sala de imprensa; porém, como Masha Green, do The New Yorker, observou, “uma ação desse tipo representaria um afastamento da política, o que, para os jornalistas, seria abdicar da responsabilidade”.

Ou seja, não podemos ignorá-lo, nem reportar suas ações sem evitar seu joguinho. Sob vários aspectos, estamos presos em uma armadilha – o que desconfio ser exatamente o que o presidente quer.

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Há uma metáfora bem conhecida na ficção de terror, que fala do monstro que se alimenta do medo. São criaturas ou energias que vivem das emoções negativas, cuja força sobre suas vítimas é diretamente proporcional ao horror que geram, como se vê em Força Diabólica, com Vincent Price; o Espantalho da franquia Batman; o Senhor Medo, da Marvel; o Lado Negro da Força de Guerra nas Estrelas.

De todos esses monstros, o mais bem-acabado, em minha opinião, é Pennywise, o Palhaço Dançarino, do livro It – A Coisa, de Stephen King, que prefere, acima de tudo, devorar criancinhas porque seus medos são mais fáceis de manipular. É um processo que ele compara a “salgar a carne”.

Se estivéssemos em um filme de terror, nossos heróis saberiam que a única forma de derrotar o monstro é se recusar a ter medo dele, diminuindo-o por meio da indiferença.

Porém, como se trata da realidade, essa opção não existe para nós, tanto como jornalistas como cidadãos. Por mais que tentemos, não dá para ignorar o presidente dos EUA.

Mas ainda temos algumas opções.

Por mais que tentemos, não dá para ignorar o presidente dos EUA

Uma delas é a ação legal. A PEN America – grupo de defesa que promove a liberdade de expressão ao redor do mundo – entrou com um processo na justiça federal para impedir que Trump use a máquina do governo para retaliar ou ameaçar represálias contra jornalistas e órgãos de imprensa por coberturas que não lhe agradem. Há outras causas pendentes contra Trump e seu governo, incluindo quaisquer revelações resultantes da investigação de Mueller.

Essas ações darão ao presidente bons motivos para sentir um gostinho do medo que inflige aos outros.

A outra estratégia é usar aquilo que Trump parece temer mais que tudo, pois é a única coisa que nem todo o dinheiro e o poder do mundo lhe deram: senso de humor.

Nas histórias de Harry Potter, de J. K. Rowling, uma das criaturas mais terríveis que nossos jovens heróis enfrentam é o boggart, um bicho-papão que se alimenta do medo e assume a forma daquilo que você mais teme. Harry vê uma assombração chamada Dementador; Ron Weasley, uma aranha gigante; Neville Longbottom, o professor Snape, cruel e misterioso.

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Essas aparições não são postas para correr mediante violência, crueldade ou isolamento; graças à genialidade da imaginação de Rowling, elas desaparecem com um feitiço chamado Riddikulus, que transforma o boggart em objeto de zombaria. Depois de aplicado o encanto, a aranha de Ron ganha patins; o Snape de Neville se vê usando o pijama de sua avó.

Não é coincidência que esse presidente seja famoso por não ter senso de humor. É a comédia, acima de tudo, que faz cair a máscara dos mentirosos e revela a verdade – virtude que Roosevelt considerava essencial para reverter a retirada e transformá-la em avanço.

Querem superar o medo? Contem piadas melhores – não aquelas fáceis, pontilhadas de crueldade e malícia, mas as complexas, generosas e fundamentalmente norte-americanas, como as de Mark Twain, ou Richard Pryor, ou Lily Tomlin.

Que o Estado de Direito, o poder da verdade e a subversão do humor façam desaparecer esse boggart de uma vez por todas. Com isso, provaremos nossa crença inabalável de que a única coisa que temos a temer é o próprio Trump.

Jennifer Finney Boylan é professora de Inglês da Barnard College, autora de “Long Black Veil”, e contribui com a coluna de opinião.
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