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Em 1992, meu filho foi morto em um tiroteio ocorrido em Massachusetts, vítima aleatória de um colega universitário perturbado que comprara um fuzil semiautomático em uma loja de armas da região e levara escondido para o campus. A administração da faculdade tinha sido avisada de que o rapaz estava armado, mas não soube como reagir; os tiroteios em escolas ainda eram coisa rara e recente.

Como poderíamos imaginar na época os vídeos da carnificina de Las Vegas feitos no celular? Ou Thousand Oaks, na Califórnia, bombando nas redes sociais porque uma dúzia de pessoas, incluindo jovens estudantes, foram dizimadas em um bar de música country?

A reação do país ao problema das armas mudou muito e se tornou bem estranha desde 1992. Já não questionamos mais “como é que foi acontecer uma coisa dessas?”. A violência armada virou conteúdo garantido no noticiário diário.

Sobreviventes ativistas batalham pela mudança cultural necessária para a erradicação do vírus que parece ter se instalado no âmago de todos nós. Lucy McBath, uma negra cujo filho de 17 anos foi morto a tiros por um branco por tocar música alta, se revoltou a ponto de disputar uma vaga no Congresso da Geórgia – e, na semana passada, conquistou uma cadeira. Manuel Oliver, cujo filho foi morto no massacre de Parkland, na Flórida, fez um modelo impresso em 3D do filho para protestar contra a impressão em 3D de armas de fogo.

Sobreviventes ativistas batalham pela mudança cultural necessária para a erradicação do vírus que parece ter se instalado no âmago de todos nós

Outras reações parecem ainda mais estranhas e sombrias. Uma das mais bizarras é a ideia, endossada recentemente pela secretária da Educação Betsy DeVos, de que colocar armas nas escolas pode reduzir os tiroteios nessas instituições. Depois da tragédia na sinagoga de Pittsburgh, Donald Trump reforçou o conceito: “Se houvesse alguma proteção dentro do templo, talvez a situação tivesse sido bem diferente.”

Penso na biblioteca lotada na qual meu filho morreu. Tento imaginar a bibliotecária tirando sua Glock e revidando o ataque.

Eu me identifico com esse cenário. Há alguns anos, cansado de ouvir dos defensores do porte de arma que eu não sabia nada sobre elas, comprei uma pistola e aprendi a carregá-la e a usá-la. Achei a natureza transgressora do exercício estimulante. Sobreviventes da violência armada não deveriam andar por aí armados. Também descobri, para minha surpresa, que o exercício de atirar é terapêutico. Eu estava dominando o instrumento do meu sofrimento. Hoje acho que alcancei o nível de conhecimento casual que se espera de um zelador ou professor de História armados. E se estivesse naquela biblioteca, em 1992, e fosse encarregado de proteger a vida do meu filho?

Fiz essa pergunta a um conhecido meu, um agente aposentado do Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF, na sigla em inglês) especializado em treinar o público para usar armas defensivamente – o tipo de treinamento que o governo quer oferecer a professores e que a NRA imagina poder impedir um assassino de cometer um massacre.

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E ele me falou da habilidade sofrível do portador de arma médio. “É o mesmo que ter uma tabela no quintal de casa e achar que pode jogar na NBA.” Mencionou as centenas de horas necessárias para alcançar o nível zen de experiência que, em meio ao caos, torna a reação instantânea e instintiva. Contou do treinamento contínuo necessário para manter essa habilidade e, generoso, concordou em ser meu guia em uma versão abreviada do tal curso, um treinamento cujo objetivo é transformar o atirador médio... em quê, exatamente? Não tenho certeza.

Ele me levou a um estande interno – um salão grande e baixo, dividido em raias, muito semelhante às pistas de boliche, escondido em um bosque, atrás de um ringue de patinação no gelo.

Na primeira lição, ele me fez praticar a posição do dedo no gatilho, procurando atirar novamente assim que a arma estivesse pronta, cravando mais marcas no alvo no menor tempo possível. Teoricamente, pelo menos. Fazia muito calor. A arma escorregava na minha mão feito um peixe de metal quando eu puxava o gatilho, voltava a mirar, sentia o gatilho pronto e disparava de novo.

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Se repetisse esses movimentos vezes sem conta, de todas as posições possíveis e todas as situações imagináveis, em algum momento hipotético, em um futuro distante, eu me transformaria em – e quero ser bem honesto aqui – um assassino treinado. Um criminoso altamente qualificado, em estado perpétuo de hipervigilância letal, em uma biblioteca universitária, tentando matar um assassino menos qualificado.

Obviamente, esse pensamento era o tipo de distração que me mataria no cenário para o qual eu estava treinando. Apertei a coronha com mais força.

Eu sei. É uma viagem, uma grande esquisitice. Faz parte da minha jornada de sobrevivência há mais de 26 anos. Pensei na angústia dos pais dos mortos em Thousand Oaks, em todos os pais de todos os filhos que foram alvejados e não resistiram. Fico imaginando que caminhos tomarão.

Um dia, DeVos deixará o cargo; onde estaremos nesse dia? O que será de nós, civis armados para se protegerem de civis armados?

Poderemos até treinar um raro professor de História ou rabino e fazê-los atirar feito um agente das Forças Especiais – mas o feito não vai garantir que, daqui a 26 anos, nossos filhos estejam mais seguros que hoje.

Gregory Gibson é autor de “Gone Boy: A Father’s Search for the Truth in His Son’s Murder” e “Hubert’s Freaks”.
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