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 | Divulgação/20th Century Fox
| Foto: Divulgação/20th Century Fox

Desde o eloquente discurso de agradecimento de Rami Malek pelo Oscar de Melhor Ator, na cerimônia de 24 de fevereiro, no qual falou sobre suas raízes egípcias, as redes sociais estão fervendo com o orgulho árabe. “Não acreeeediitoooo!!! Estou tendo um treco, Rami Malek ganhou!!!! Orgulho árabe aqui! Estamos superorgulhosos!”, tuitou alguém. O sentimento era geral.

Só que Malek não foi o único indicado deste ano; de fato, talvez tenha sido a primeira vez que dois filmes feitos por árabes e um ator da mesma ascendência disputaram nas categorias mais prestigiadas. O mais novo trabalho da libanesa Nadine Labaki, Cafarnaum, brigou como Melhor Filme Estrangeiro (a segunda vez consecutiva que um longa libanês consegue a proeza na premiação), e Sobre Pais e Filhos, de Talal Derki, sírio que vive em Berlim, concorreu como Melhor Documentário.

A vitória de Malek foi merecida; devemos aplaudir a conquista do prêmio por um descendente de árabes por seu talento, e por sua escolha para um papel pouco óbvio, mas realmente necessário é um maior apoio para os árabes que trabalham com cinema no Oriente Médio e estão tentando fazer filmes de qualidade. Nos últimos vinte anos, apesar das dificuldades (políticas, financeiras e sociais), profissionais dedicados da região vêm produzindo belos filmes, verdadeiros antídotos para as notícias eternamente desencorajadoras que vêm dos berços originais da Primavera Árabe e seus vizinhos.

Grande parte dessas obras exige uma autossuficiência considerável. No mínimo, as indicações recentes deveriam estimular maior assistência financeira da parte dos investidores e instituições cinematográficas locais, o estabelecimento de um sistema de distribuição mais confiável, menos ameaça de censura e mais audiência entre os árabes, que continuam fascinados pelas superproduções hollywoodianas e os clássicos comerciais egípcios.

As indicações recentes deveriam estimular maior assistência financeira da parte dos investidores e instituições cinematográficas locais

Duas décadas atrás, a maioria dos cineastas do Oriente Médio era originária do Egito, Síria e Líbano, mas agora já há diretores trabalhando no Iraque, Bahrein, Catar e até Arábia Saudita.

Os longas da Argélia, um dos vários países da região do Magreb com forte tradição cinematográfica, foram indicados algumas vezes ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro desde os anos 60 (e um deles, Z, ganhou em 1970), mas só mais recentemente obras árabes do Oriente Médio receberam tal reconhecimento. Em 2016, O Lobo do Deserto, da Jordânia, país com uma indústria incipiente, foi indicado na categoria estrangeira, na qual também já concorreram duas obras do palestino Hany Abu-Assad nas duas últimas décadas.

Abu-Assad faz filmes provocadores, mas divertidos, sobre a vida dos palestinos, com tramas românticas de fundo. O Paraíso, Agora!, de 2005, indicado ao Oscar, conta a história de dois candidatos a homem-bomba; Omar, de 2014, também indicado, abordava a suspeita perniciosa entre os palestinos que um deles seria um espião israelense. O primeiro foi rodado em Nablus, entre toques de recolher e ataques militares, financiado por verba europeia; para o segundo, Waleed Zuaiter, o produtor palestino-americano que também estrela o filme, batalhou para obter fundos de investidores palestinos independentes. O Sonho de Wadjda, de Haifaa al-Mansour, primeiro longa-metragem totalmente rodado na Arábia Saudita, foi lançado em 2012, marcando a primeira vez que os sauditas submeteram uma obra ao Oscar. Ele não foi indicado, mas foi um importante precursor do compromisso do país com o crescimento de sua indústria cinematográfica.

A indicação este ano de Cafarnaum, drama realista emocionante sobre um adolescente combativo relegado a uma vida de pobreza e provações, fez de Labaki a primeira diretora árabe a ser selecionada para disputar o Oscar. Para isso, porém, teve de financiar sua obra praticamente sozinha, hipotecando a casa onde mora em Beirute.

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Leia também: Não dá para tolerar o Islã radical (artigo de Rodrigo Constantino, publicado em 21 de dezembro de 2016)

Ela recebeu uma pequena quantia do Instituto de Cinema de Doha, no Catar, uma das poucas organizações do mundo árabe a oferecer financiamento para cineastas árabes no Oriente Médio (e também ajudou a custear Sobre Pais e Filhos).

Seu marido, Khaled Mouzanar, que também é produtor da película e compositor da trilha sonora, conta que não só tiveram de hipotecar a casa para pagar a obra, como também atrasaram as mensalidades da escola do filho (ele me disse depois que, no fim das contas, conseguiram verba através de investidores locais).

A verdade, porém, é que os cineastas médio-orientais continuam enfrentando a censura ou sendo forçados a praticá-la. Em 2017, o diretor libanês Ziad Doueiri, cujo quarto filme, O Insulto, foi indicado a Melhor Filme Estrangeiro no ano passado, foi detido brevemente quando voltava do Líbano, aonde tinha ido para promover a obra, e forçado a rebater as acusações de traição na frente de um tribunal militar (ainda que tenha sido inocentado). É que seu longa anterior, O Atentado, de 2012, rodado parcialmente em Israel, desafiou as leis libanesas que proíbem as viagens para aqueles país, causando furor. Sua exibição foi proibida no Líbano; ele teve de se mudar para Paris.

De certa forma, as coisas melhoraram desde West Beirut, filme de estreia de Doueiri, em 1998, quando os investimentos locais eram ainda mais escassos, e até mesmo desde o primeiro filme de Labaki, Caramelo, uma comédia dramática leve e charmosa que foi lançada no Festival de Cannes de 2007, pois O Insulto, de Doueiri, foi praticamente custeado por investidores particulares libaneses. Vários cinéfilos árabes estão fazendo o que podem para dar corpo ao cinema árabe e ajudar a estimular o público a prestigiar o cinema regional. Segundo Rasha Salti, que é quem faz a seleção dos filmes árabes para alguns dos festivais internacionais mais importantes, “o Oscar deste ano pode não ter marcado uma ‘apoteose’, mas sim a afirmação da maturidade do cinema árabe”.

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Labaki, Doueiri, Abu-Assad e Naji Abu Nowar são alguns dos cineastas cujos trabalhos refletem o Oriente Médio contemporâneo, abordando temas locais e globais.

Cafarnaum, que rendeu quinze minutos de aplausos em pé do público presente em Cannes, no ano passado, perdeu para Roma, de Alfonso Cuarón. E como o filme do mexicano, aborda as dificuldades das mulheres trabalhadoras: depois que Zain, o jovem protagonista de língua afiada (que na vida real é um refugiado sírio que vivia no Líbano, mas com a ajuda de Labaki, já se mudou para a Europa com a família), foge de casa, faz amizade com Rahil, operária migrante etíope que tem um filhinho. Intenso e profundamente comovente, Cafarnaum é o cinema em sua forma mais vital e potente.

Filmes de qualidade que abordam questões negligenciadas podem fazer sucesso, sim, se forem expostos a um público mais amplo. Com apoio financeiro mais sólido e menos restrições, os filmes árabes do Oriente Médio poderiam muito bem ser indicados ao Oscar praticamente todo ano – e, quem sabe, talvez um dia até vencer.

Nana Asfour é editora da seção de Opinião do New York Times.
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