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Felipe Lima

Um muro “alto, sólido, indevassável, maravilhoso” – a célebre promessa de campanha de Donald Trump ganhou alguma materialidade com a entrega de propostas de empresas interessadas na construção de protótipos. “Não é provável que venhamos a erguer um muro físico desde o mar até o mar reluzente”, explicou John Kelly, secretário de Segurança Interior, acrescentando que serão utilizados sensores e drones para preencher os vazios, pois “barreiras físicas funcionam se são colocadas nos lugares apropriados”. O muro, portanto, não se estenderá pelos 3.201 quilômetros de extensão da fronteira meridional dos EUA – uma hipótese onírica, que implicaria ceder fisicamente todo o leito líquido do Rio Grande ao México. Mas suas reverberações econômicas e geopolíticas serão sentidas muito além da América do Norte.

San Ysidro/Tijuana, Yuma/San Luis, Nogales, El Paso/Juarez, Del Rio/Acuña, Laredo/Nuevo Laredo, Brownsville/Matamoros: na fronteira, uma sequência de cidades-gêmeas assinala, metaforicamente, o entrelaçamento histórico das duas nações tão contrastantes. Cerca de 36 milhões de residentes nos EUA declaram ascendência mexicana. Entre 1965 e 2015, mais de 16 milhões de mexicanos emigraram para os EUA. O muro, cujos custos são grosseiramente estimados em algo entre US$ 12 bilhões e US$ 21 bilhões, coagula a pretensão exorbitante de fazer a história retroagir.

O movimento, uma fonte de dinamismo econômico e cultural, fermenta o nativismo americano. Who are we?, escrito pelo sociólogo conservador Samuel Huntington, sustenta a tese de que a imigração hispânica opera como um ácido, dissolvendo a identidade norte-europeia e protestante dos EUA. Kris Kobach, um protegido do sociólogo, tornou-se conselheiro informal da Casa Branca para assuntos de imigração. O muro tem seus alicerces fincados nas areias ideológicas do pensamento nativista.

O motor econômico do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), que entrou em vigor em 1994, acelerou as tendências históricas subjacentes. Em duas décadas, o intercâmbio bilateral EUA-México saltou de US$ 100 bilhões para cerca de US$ 520 bilhões – e o México converteu-se no terceiro maior parceiro comercial americano, pouco atrás da China e do Canadá. Comércio, nesse caso, é um outro nome para investimentos. Sob as asas do Nafta, constituíram-se cadeias produtivas just in time, integrando fábricas implantadas nos dois lados da fronteira. O comércio é, essencialmente, formado por trocas intrafirmas. Uma intrincada teia econômica associou os trabalhadores mexicanos aos consumidores americanos.

A classe média-baixa que ajudou a eleger Trump pagará os custos diretos e indiretos do muro

Previsivelmente, a esquerda latino-americana interpretou o Nafta como manifestação atualizada do imperialismo americano. O diagnóstico nunca foi inteiramente compartilhado pela esquerda mexicana, que assistiu à transição das fábricas de montagem final (as maquiladoras) para indústrias cada vez mais sofisticadas e à transformação da paisagem social do norte do México. Desde 1994, a população dos seis estados que fazem fronteira com os EUA cresceu em 60%, de 13,2 milhões para 20,2 milhões, acompanhando a curva de expansão dos salários.

Trump, porém, concorda de um modo peculiar com a esquerda latino-americana. Na opinião do presidente americano, inspirada pelo nacionalismo econômico de altos assessores, o Nafta é, efetivamente, ferramenta de exploração – mas de exploração dos EUA pelo México. Desse conceito surpreendente surgiu a ideia de combinar as políticas anti-imigratórias às políticas protecionistas, fazendo o México pagar pelo muro por meio da imposição de altas tarifas sobre suas exportações dirigidas aos EUA. O plano, ainda circunscrito à esfera especulativa, implicaria a virtual destruição do Nafta.

A ruptura da teia econômica tecida nas últimas décadas penalizará empresas e consumidores americanos, que pagarão mais caro por incontáveis bens de consumo. De fato, a classe média-baixa que ajudou a eleger Trump pagará os custos diretos e indiretos do muro, junto com os trabalhadores mexicanos. Mas o impacto do terremoto obrigará o México a rever seu lugar no mundo, diversificando suas parcerias e reduzindo sua dependência da economia americana. Posto diante de uma encruzilhada existencial, o México se inclinará na direção da Ásia, inscrevendo-se nos acordos de comércio e investimentos que os EUA já não querem, e da América do Sul, especialmente Brasil, Colômbia e Argentina.

No ciclo lulopetista, o Brasil virou as costas para a diplomacia comercial regional e bilateral, rejeitando ideologicamente o caminho dos acordos de comércio e investimentos. Hoje, finalmente, o Itamaraty acorda da longa letargia, reconhecendo que a economia brasileira necessita de um choque de abertura para reencontrar as chaves da eficiência e do incremento de produtividade. A crise nas relações entre EUA e México descortina oportunidades singulares. O México que precisa se reinventar pode oferecer-nos um passaporte rumo à macroárea econômica da Bacia do Pacífico.

A Parceria Transpacífica (TPP) projetada por Barack Obama está morta. No vácuo do tratado abandonado, a China impulsiona uma Parceria Econômica Regional Ampla (RCEP), à qual os países latino-americanos da Aliança do Pacífico almejam se incorporar. A iniciativa da conexão da América Latina com a Ásia depende, em princípio, do México e de seus sócios (Colômbia, Chile e Peru). Contudo, desde a reunião exploratória realizada em 7 de abril entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul, abriu-se uma nova vereda. O Brasil tem a chance de olhar para fora, por meio de uma janela mexicana.

O México deve ser visto como uma ponte rumo aos fluxos globais de comércio e investimentos, não um mercado para a carne, a soja, o minério ou as autopeças. A globalização sobreviverá à muralha nacionalista de Trump. O Brasil não tem o direito de, uma vez mais, fechar-se na sua concha protecionista.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
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