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Em A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber desenvolve a ideia de desencantamento do mundo, segundo a qual a modernidade e o avanço do conhecimento obrigaram-nos a deixar de entender o mundo do ponto de vista mágico e mítico, para compreendê-lo em uma abordagem lógica e racional. 

Ou seja, não seria então o imponderável a instituição encarregada de explicar os fenômenos que cercam a existência, sob aquela perspectiva de que as divindades conviveriam conosco e interfeririam em nossos problemas, comandando tudo, desde a natureza até as tramas e os dramas das relações. O metafísico, a seu bel prazer, manipularia o físico, não havendo limite estanque entre o natural e o sobrenatural, amplíssimo espaço dentro do qual Deus, provavelmente, joga seus dados. 

Tínhamos um lugar habitado por duendes, bruxas, gnomos, demônios, fadas e anjos, símbolos da luta do bem contra o mal, que insistiam em nos perturbar. 

Neste espectro de coisas, o intelecto humano era estimulado sobretudo pelas emoções e sentimentos nascidos dessa narrativa fantástica que alimentara as artes e as filosofias até a derrocada do espírito medieval e o alvorecer da Idade Moderna, momento a partir do qual começa a ocorrer uma mudança significativa na concepção do mundo para os ocidentais.

Nós, mamíferos evoluídos, ainda nos damos o luxo de ter a imensa capacidade de imaginar coisas

A influência implacável do pensamento racional, matemático e metódico sobre o religioso e o místico reelaborou esta realidade e tudo – ou quase tudo, pelo menos – deveria ser submetido ao impetuoso escrutínio da ciência, de modo que se buscava determinar, a altíssimo custo, uma rigorosa separação do espiritual em face do material. O mundo estava sendo constantemente sabatinado pela lente meticulosa do pensamento científico. 

Até bem pouco tempo atrás, se fôssemos acometidos por uma febre, a atitude bem provável era recorrer a um curandeiro, a quem se atribuíam poderes mágicos, ou a um religioso, na esperança de curarmos a moléstia. Hoje, a medida mais prudente – aos que têm acesso, naturalmente – talvez seja se garantir primeiro mediante a prestação de um socorro médico. 

Desde então, o mundo, passo a passo, torna-se racionalizado e vigiado pela parafernália tecnológica, o que, obviamente, tem seus indiscutíveis méritos. 

A despeito dessa constatação, nós, mamíferos evoluídos, ainda nos damos o luxo de ter a imensa capacidade de imaginar coisas, de idealizar, de divagar o pensamento, transformando o que é simples, rude e banal em um teatro de sonhos acalentado pela sublimação. 

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O futebol, por exemplo, tomado aqui como paixão popular na primeira ordem do dia, comprova tal processo. A emoção do gol, a técnica refinada dos atletas e a polêmica em torno dos erros e dos acertos dos árbitros movem as massas, e o futebol é uma vigorosa arena para o incremento do debate público, insuflando – quem diria – a arte da boa argumentação. 

Cedo ou tarde, a tecnologia aplicada ao futebol viria. Juízes são agora auxiliados pelo VAR, sigla do festejado Video Assistant Referee, o nosso árbitro de vídeo, cuja promessa, sustentam, é defenestrar toda e qualquer dúvida, toda e qualquer discussão sobre lances considerados capitais ao resultado do jogo e, assim, erradicar um mal crônico: a injustiça dos gramados. 

A equipe derrotada e sua torcida sequer poderão, agora, chorar e gritar e espernear e jogar a culpa na arbitragem até os finais dos tempos. Perdemos o direito de sofrer injustamente e de protestar, veementemente, segunda-feira na hora do cafezinho. 

O curioso é que parte da mídia esportiva, alguns intrépidos e atilados contendores da hora do almoço, que têm por matéria-prima a enfadonha polêmica, defende o uso da tecnologia no futebol. Correm o risco da irrelevância e, por consequência, do desemprego. Agem iguaizinhos ao simpático leitão da fazenda, que serve de garoto-propaganda em campanha publicitária para se vender mais bacon. 

Marcos Antônio da Silva é mestre em Direito pela Uenp.

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