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Com o fim do julgamento de Bolsonaro e corréus, a sua condenação e a consequente fixação da pena, a luta pela concessão de uma anistia ampla, geral e irrestrita divide a sociedade brasileira e os seus representantes políticos, quanto à sua constitucionalidade, legalidade e por óbvio, a sua legitimidade diante da complexa teia de interesses em jogo e, ao mesmo tempo, a premente necessidade de se definir de forma justa a sua concretização.
É oportuno lembrar que a anistia é concedida por meio de lei promulgada pelo Congresso Nacional (caput e Inciso VIII do artigo 48 da Carta Magna), remetendo ao perdão judicial e à extinção da punibilidade dos condenados, bem como as sanções que lhes foram aplicadas, especialmente do ponto de vista penal, conforme preveem ocaput e Inciso II do artigo 107 do Código Penal.
A anistia é concedida para indivíduos que cometeram crimes políticos ou comuns conexos àqueles. Tem como pano de fundo, a restauração dos direitos dos condenados e a pacificação social e política de uma sociedade dividida sob a ótica ideológica. A questão que remete à concessão da anistia não é o problema que deve preocupar os agentes públicos e privados que a defendem e, sim, a busca de um consenso do ponto de vista jurídico e político do que se entende como “crimes políticos”, como condição sine qua nom para a sua concessão.
Aquela definição esbarra na atual controvérsia sobre a interpretação que vai prevalecer, relativamente à previsão dos Incisos XLIII E XLIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. O Inciso XLIII dispõe que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores...(...)”. Por sua vez, o Inciso XLIV prevê que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Observe-se que o legislador constituinte originário (que promulgou a Constituição Federal de 1988) não previu que a ação de grupos armados civis e militares...(...) seria insuscetível de graça ou anistia, a exemplo dos crimes elencados no Inciso anterior.
O objeto de concessão de anistia são os crimes políticos. Por essa razão, quem deve decidir sobre esse tema são os poderes políticos (Legislativo e Executivo), sem interferência do Poder Judiciário, pelo fato de este ser técnico e apolítico
A conclusão mais lógica e coerente é a de que o legislador constituinte originário não adotou a mesma vedação à concessão de graça ou anistia de forma consciente, senão teria incluído aquele crime no Inciso XLIII ou o teria repetido na redação do Inciso XLIV, da mesma forma que reiterou que esse crime é inafiançável, ao mesmo tempo em que acrescentou que é imprescritível, sem qualquer alusão à vedação de graça ou anistia.
Ambos os Incisos constituem cláusulas pétreas, uma vez que fazem parte do artigo 5º da Carta Magna que remete à garantia dos direitos fundamentais individuais e coletivos, embora haja outros espalhados ao longo do texto constitucional. Por serem cláusulas pétreas, aqueles direitos não podem ser modificados pelo atual legislador constituinte “derivado”, no sentido de serem restringidos no que se refere ao seu “núcleo” e muito menos, eliminados.
Da mesma forma, a previsão do Inciso XLIV não pode ser interpretada de forma restritiva, estendendo àquele crime, a vedação de concessão de graça ou anistia, até pelo fato de serem “crimes políticos”, diferentemente dos crimes elencados no Inciso XLIII que são sabidamente reconhecidos como “crimes comuns”
É importante observar que aquele Inciso, assim como os Incisos XLI, XLII, XLIII, XLV, XLVI, XLVII, XLVIII, XLIX criados pelo legislador constituinte originário teve como objetivo, a proteção dos bens jurídicos ali previstos e a garantia da aplicação de sanções penais (criminais), desde que submetidas à Constituição e no Princípio da Legalidade que deve orientar um Estado Democrático de Direito.
Contrariamente à vontade do legislador constituinte originário, o STF entendeu que o crime previsto no Inciso XLIV seria, também, insuscetível de graça ou anistia, fundamentando aquela interpretação no fato de ser um crime contra o Estado Democrático de Direito, razão pela qual, Moraes e Flávio Dino já se posicionaram em seus respectivos votos no âmbito do julgamento do ex-presidente e corréus, de que os crimes a eles imputados não poderiam ser anistiados. Independentemente da motivação que levou à antecipação de voto por parte daqueles ministros, além da mesma posição exteriorizada por Gilmar Mendes, os crimes contra o Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado são políticos.
A despeito de a Constituição não os ter definido e, tampouco, a legislação, o que evidencia uma falha na regulamentação desse conceito, não se discute o fato de que todas as cláusulas pétreas previstas no texto constitucional são de eficácia plena, ou seja, não demandam uma regulamentação posterior, por expressarem por si só, a vontade do legislador constituinte originário e serem, por óbvio, de aplicação imediata.
Finalmente, é oportuno observar que o caput e Inciso IV do artigo 109 da Carta Magna determinam, respectivamente, que “aos juízes federais compete processar e julgar crimes políticos...(...). Aqui, a doutrina trata daquela competência, quando se trata de crimes políticos, embora a Lei de Segurança Nacional que albergava os crimes políticos teria sido revogada em 2021, mais por uma rejeição decorrente do regime ditatorial da época do que propriamente pela sua eficácia, uma vez que a Lei nº 14.197/2021 teria transportado a maioria dos fatos típicos ali previstos, para o Código Penal. Mais uma razão para se somar ao voto do ministro Luiz Fux questionando a competência da Primeira Turma do STF para processar e julgar pessoas sem prerrogativa de foro. Para além daquela competência “formal” há que se estender o debate para o mérito daquela ação penal: a natureza dos crimes cometidos que atrairia o seu julgamento para a Justiça Federal, ratificando a fundamentação de Fux.
Boa parte da doutrina entende que “crimes políticos” remete indiscutivelmente, ao ataque à segurança interna ou externa do Estado. De acordo com Gerlack Neto em o Dicionário Técnico-jurídico de Direito Penal e Processual Penal (2009, pg.57), o crime político é “aquele que põe em risco a própria segurança interna ou externa das instituições políticas”. Em outras palavras, o crime político coloca em perigo a segurança do Estado, do governo e o sistema político. Qualquer ato que se contraponha aos interesses do Estado pode configurar o “crime político”.
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No caso concreto, não há dúvidas de que o suposto cometimento de crimes de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de Golpe de Estado imputados aos indivíduos que participaram dos atos do 8 de janeiro e dos núcleos que teriam promovido, financiado e integrado aquela organização criminosa são de natureza “política”.
O argumento de que em um Estado Democrático de Direito, o conceito de crimes políticos é contraditório ou sem qualquer relação com um regime democrático não se sustenta, em razão de aquele conceito ser indispensável, quando se trata de uma possível extradição. A distinção entre crimes políticos e crimes comuns é imprescindível para uma decisão do Estado requerido, para a aceitação ou não do pedido do Estado requerente.
O próprio STF já decidiu em sede de jurisprudência que: “não havendo a Constituição definido o crime político, ao Supremo cabe, em face da conceituação da legislação ordinária vigente (remetendo â Lei de Segurança Nacional), dizer se os delitos pelos quais se pede a extradição, constituem infração de natureza política ou não, tendo em vista o sistema da principalidade ou da preponderância”. (Ext. 615, de relatoria do ministro Paulo Brossard, em 1994).
A princípio, a situação dos possíveis anistiados seria similar ao tempo da promulgação da Lei da Anistia de 1979, uma vez que os crimes supostamente cometidos são de natureza política, a despeito da controvérsia sobre esse tema. No entanto, a conjuntura da época era totalmente diferente da atual. Os anos 1970 foram marcados por um regime ditatorial, em que as pessoas que a enfrentaram, teriam praticado crimes graves que foram perdoados por meio da concessão de anistia. Na mesma direção, agentes públicos que teriam cometido atos ilícitos de extrema gravidade foram, também, anistiados.
Nesse sentido, a possibilidade de se promulgar uma lei para anistiar as pessoas envolvidas em atos do 8 de janeiro, bem como os acusados de terem promovido, financiado e liderado a suposta tentativa de golpe de Estado e Abolição violenta do Estado Democrático de Direito ensejariam, em tese, a concessão de anistia para agentes públicos, em razão das supostas ilegalidades praticadas no âmbito de inquéritos e processos penais em andamento e por omissões do Poder Legislativo diante dos abusos cometidos pelo STF.
Nos anos da ditadura, os crimes que foram anistiados foram reconhecidos como políticos, embora remetessem a crimes comuns (conexos), como foi o caso do sequestro de embaixador, assaltos a bancos, além de outros. A esse respeito, a antiga Lei de Segurança Nacional revogada pela Lei 14.197/2021 previa tipos penais de natureza política que foram, recentemente, inseridos no Código Penal.
O atual julgamento de Bolsonaro e demais réus remete ao suposto cometimento dos crimes de Golpe de Estado (artigo 359-M) e Abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L) que se encontram previstos naquele Código. Daí a segunda polêmica! Parte da doutrina defende que os crimes previstos no Código Penal constituem crimes comuns (infrações penais comuns) e não podem ser configurados como crimes políticos.
A despeito daquela afirmação há que se anotar a observação anterior de que os crimes que foram inseridos no Código Penal são, inquestionavelmente, políticos, não apenas porque eram oriundos do antigo diploma legal revogado (Lei de Segurança Nacional), como, principalmente, pelo fato de serem igualmente previstos na Lei 1.802/1953 (ainda vigente) que dispõe sobre crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social. Todos os crimes previstos naquela lei são reconhecidamente de natureza política, por atentarem contra a soberania nacional, contra a ordem política e social ou subverter aquela ordem com a finalidade de implantar uma ditadura. Decerto que a anistia demanda uma análise simultânea da sua viabilidade política e da sua constitucionalidade sob a ótica jurídica.
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Do ponto de vista político, as variáveis são diversas e provocam confrontos entre representantes políticos com interesses e finalidades divergentes entre si. Um dos argumentos contra a concessão da anistia é o fato de que o ex-presidente e corréus ainda não foram condenados definitivamente. Aquele fundamento não se sustenta, tanto do ponto de vista da doutrina, quanto sob a ótica da jurisprudência do STF e da história do Brasil.
É recorrente no âmbito da doutrina a concepção de que a anistia pode ser: a) restrita ou irrestrita, a depender se atinge todos os que praticaram crimes ou não; b) própria ou imprópria, caso ocorra antes ou após o trânsito em julgado da condenação; c) comum ou especial, na hipótese de atingir crimes comuns ou políticos e; d) incondicionada ou condicionada, se impuser ou não uma exigência para a sua concessão.
Conforme se pode depreender, o requisito de condenação definitiva não é ratificado pela doutrina e tampouco pela história, uma vez que se concedeu anistia (relativamente ao tempo ditatura militar) sem a exigência de haver uma condenação em caráter definitivo.
Há precedente no STF no sentido contrário, concedendo a anistia por meio da Lei 6.683/1979que foi objeto de ajuizamento da ADPF-153 (de relatoria do ministro Eros Grau de 2010), cujo caráter foi bilateral e somente não foi irrestrita porque não abrangeu os já condenados com sentença transitada em julgado, pelas práticas de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal...(..).
O que deve ser determinante para a concessão ou não de anistia é a vontade do legislador constituinte originário devidamente expressa na Carta Magna e o seu cumprimento pelos legisladores constituintes “derivados” que compõem as duas Casas Legislativas do Congresso Nacional.
O objeto de concessão de anistia são os crimes políticos. Por essa razão, quem deve decidir sobre esse tema são os Poderes políticos (Legislativo e Executivo), sem interferência do Poder Judiciário, pelo fato de este ser técnico e apolítico. Nessa direção, a ADI-1.231 (de relatoria do ministro Carlos Velloso em 2006) ratificou que a anistia depende de lei e é para os crimes políticos, embora possa ser concedida, excepcionalmente, para crimes comuns (conexos). Por outro lado, o artigo 108 do Código Penal prevê que: “nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto aos outros, a agravação da pena resultante da conexão”.
Note-se que existem, portanto, duas possibilidades quanto aos crimes conexos: a) a primeira remete à jurisprudência do STF que defende o perdão, tanto aos crimes políticos, quanto aos crimes comuns; e b) ou apenas a extinção de punibilidade para um dos crimes. E o mais relevante para a atual conjuntura! “Pode abranger, também, qualquer sanção imposta por lei”, afirmou Carlos Velloso. Nesse caso, seria possível a concessão de anistia para o perdão de sanções diversas da seara penal.
Somente na hipótese de ocorrer “um desvio do poder de legislar ou afronta ao devido processo legal substancial”,haveria a necessidade de um controle judicial, afirma aquela jurisprudência. Diante do exposto, há que se reconhecer que a concessão de anistia se reveste, inquestionavelmente, de uma vontade política em consonância com o que se capta da opinião pública pari passu com o cumprimento da vontade do legislador constituinte originário, sem qualquer restrição ou acréscimo no que diz respeito às cláusulas pétreas da Carta Magna.
Finalmente! Se houver muita turbulência em torno do presente tema seria conveniente refletir sobre a conveniência e oportunidade daquele ato, utilizando um instrumento político que remete à vontade soberana do povo: a realização de um plebiscito ou referendum “legislativo” (se remeter à lei), conforme dispõem os Incisos I e IIdo artigo 14 da Constituição Federal de 1988.... por que não?
Vera Chemim é advogada dedicada ao estudo e pesquisa de Direito Constitucional com mestrado em Administração Pública (Finanças Públicas) pela FGV de São Paulo.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



