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Um recente caso investigado pela Polícia Civil de São Paulo, envolvendo ataques coordenados a grupos vulneráveis em redes sociais, escancara não apenas a face sombria do ambiente digital, mas também a complexidade das relações que ali se estabelecem.
Para além do sensacionalismo e da indignação moral, é preciso analisar o fenômeno à luz das dinâmicas culturais e psicológicas que moldam o comportamento coletivo online.
No livro "Cultural Evolution in the Digital Age", Alberto Acerbi argumenta que as redes sociais não são meros canais de comunicação, mas verdadeiros laboratórios de experimentação cultural. O ambiente algorítmico amplifica comportamentos, positivos ou negativos, e favorece conteúdos que geram engajamento emocional.
Não é por acaso que ataques a grupos vulneráveis viralizam: a lógica da viralização privilegia o choque, a indignação e a polarização, criando ciclos de retroalimentação que dificultam a contenção do dano.
Além disso, Acerbi destaca como a digitalização multiplica a influência da conformidade social. Grupos online reforçam padrões de comportamento e criam bolhas onde o assédio e a pressão social digital são validados.
O anonimato e a dissociação de responsabilidade, tão presentes no ambiente digital, reduzem as barreiras éticas e facilitam a perpetuação de comportamentos antissociais.
Um aspecto frequentemente negligenciado nesse debate é o papel das relações parassociais: laços unilaterais que usuários estabelecem com figuras públicas, influenciadores ou até mesmo com outros usuários no ambiente digital. Essas relações, embora desprovidas de reciprocidade, são emocionalmente intensas e podem gerar tanto identificação quanto hostilidade.
No contexto dos ataques relatados, as relações parassociais funcionam como catalisadores de envolvimento: as vítimas tornam-se alvos não apenas por sua vulnerabilidade objetiva, mas também por sua exposição e visibilidade digital.
O público, por sua vez, sente-se autorizado a interagir, julgar e punir, como se participasse de um espetáculo coletivo. A fronteira entre espectador e agente se dissolve, e a violência simbólica ganha contornos de participação social legítima.
Enquanto isso, os algoritmos das plataformas digitais não apenas refletem, mas moldam as prioridades da nossa cultura. Ao direcionar a atenção para temas e perfis específicos, criam e reforçam padrões de polarização. No caso dos ataques aos vulneráveis, vemos como a assimetria de atenção e a diferença no tom das menções são, em parte, produto dessa mediação digital.
É fundamental reconhecer que a responsabilidade é dos criminosos, mas nós como sociedade e indivíduos dotados da capacidade de intermediar situações podemos – e devemos – nos comportar no meio digital de forma a não facilitar nem promover esse tipo de comportamento.
A responsabilidade, na origem do problema, não pode recair apenas sobre indivíduos ou grupos criminosos.
A urgência é evidente: estamos diante de um desafio que não se resolve apenas com repressão, mas exige uma profunda revisão dos valores e práticas que orientam nossa vida digital
O caso paulista, que teve desdobramentos nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pará, Pernambuco, Santa Catarina e também no Distrito Federal, é um sintoma de um fenômeno global: a dificuldade de adaptar nosso comportamento e nossa cultura a um ambiente onde as normas se codificam e se disseminam em escala inédita.
A evolução cultural digital, como aponta Acerbi, é marcada por incertezas e ambivalências. Cabe a nós, enquanto sociedade, decidir se aceitamos a lógica da viralização e da indiferença, ou se construiremos, juntos, um espaço digital mais saudável .
Lilian Carvalho é PhD em Marketing, professora da FGV/EAESP e coordenadora do Centro de Estudos em Marketing Digital.



