A virtude maior da Lei da Ficha Limpa transcende o texto legal e as discussões jurídicas que agora se travam, servindo de exemplo mais veemente de que a sociedade civil é ainda titular da soberania popular
Pouco tempo após ter se pronunciado sobre a inaplicabilidade da Lei da Ficha Limpa às eleições gerais realizadas em 2010, no sentido de que as leis que alteram o procedimento eleitoral devem ter pelo menos um ano de vigência para terem aplicabilidade, o Supremo Tribunal Federal retornou à análise de tão controvertido texto legal, que, agora superado o interstício legal, a lei terá aplicabilidade às eleições municipais de 2012.
Assim decidindo, o STF concluiu que os condenados por decisão de órgão colegiado, pela prática de certos crimes, de ilícitos eleitorais graves como compra de votos, abuso do poder político e abuso do poder econômico e, ainda, de atos de improbidade administrativa, ficam inelegíveis, ainda que a decisão esteja sujeita a recurso.
O acompanhamento da sessão de julgamento permitiu contudo perceber que as objeções levantadas ao texto da lei ainda são contundentes e relevantes, pois, se o processo ainda não chegou a uma decisão definitiva, a sanção da inelegibilidade, que restringe o direito fundamental (como todos os direitos políticos) de acesso a mandato eletivo, somente poderia ser imposta após o trânsito em julgado da decisão condenatória. Nasce o risco de que outros direitos fundamentais, com o mesmo argumento, possam ser restringidos sem trânsito em julgado.
A divergência centrou-se na constatação, perfilada pela maioria de que a inelegibilidade não é uma sanção, mas sim o estado em que se encontra quem teve condenação proferida por órgão colegiado, aplicando-se reta via.
Já os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e o presidente do STF, Cezar Peluso, divergiram radicalmente. Dias Toffoli foi o mais incisivo ao afirmar que "a Lei Complementar número 135 é reveladora de profunda ausência de compromisso com a boa técnica legislativa. É uma das leis recentemente editadas de pior redação legislativa dos últimos tempos. Leis mal redigidas às vezes corrompem o propósito dos legisladores e o próprio direito".
Marco Aurélio Mello acompanhou a maioria, mas divergiu no tópico em que considerou que "a Lei é valida e apanha atos e fatos que tenham ocorrido após junho de 2010 não atos e fatos pretéritos. Quando eu disse vamos consertar o Brasil foi de forma prospectiva e não retroativa, sob pena de não termos mais segurança jurídica".
Superado o dilema de sua aplicabilidade, a discussão não acabou, pois ainda tramita no Supremo outra ação em que se questiona se a inelegibilidade se aplicará a partir da condenação em órgão colegiado ou se apenas depois do julgamento final, o que faz com que, nesse último caso, a inelegibilidade se estenda para além dos oito anos previstos na lei.
A controvérsia é saudável para a democracia. As certezas é que lhe são perigosas.
Ao colocar em linha de análise os princípios da presunção de inocência, do devido processo legal, da segurança jurídica e da moralidade, a Lei da Ficha Limpa chamou a atenção para o clamor popular, traduzindo-se em autêntico "basta" da sociedade civil à imoralidade política. Criou potente filtro de acesso a mandatos políticos que somente poderão ser outorgados a quem detenha inquestionável idoneidade.
O projeto de lei tramitou em tempo recorde no Congresso. Já foi duas vezes questionado no Supremo. E ainda assim segue vigente e, agora, com plena aplicabilidade. Sua virtude maior, contudo, o supera, transcende o texto legal e as discussões jurídicas que agora se travam, servindo de exemplo mais veemente, registrado na histórica recente da democracia brasileira, de que a sociedade civil é ainda titular da soberania popular, resgatando e exercendo a prerrogativa de conformar o Estado aos padrões de moralidade e justiça que julga adequados.
Fernando Gustavo Knoerr, doutor e mestre em Direito do Estado, é coordenador do Curso de Direito das Faculdades Opet.



