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Num pedido público de desculpas pelo repulsivo assédio contra uma funcionária da TV Globo, o ator José Mayer tentou minimizar a sua culpa individual recorrendo a uma culpa coletiva (machismo). Ao fazê-lo, confirmou o uso de um álibi descrito pelo filósofo alemão Eric Voegelin no livro Hitler e os Alemães. Apesar de Voegelin ter analisado um fenômeno muito distinto, o que ele explica ajuda a analisar a conduta do ator e de parte da sociedade brasileira.

Em que, afinal, consiste esse álibi? A explicação passa por dois aspectos. O primeiro é “aceitar o lugar-comum da culpa coletiva, que então se expressa numa atitude extremamente condescendente de esconder-se no passado”. Ao sempre falar das coisas que aconteceram e que já não podem mais ser modificadas, busca-se evitar lidar com a culpa no presente e mudar de atitude.

O segundo aspecto é rejeitar uma culpa coletiva por algo que aconteceu no passado pelo “motivo ulterior de recusar-se a dominar o presente”. Porque dominar o presente é fundamental para corrigir os erros cometidos. Se alguém “não é responsável pelo que aconteceu no passado”, então “não está preparado para fazer o que deve” e, assim, alterar o que deve ser alterado.

Quando José Mayer afirma em sua carta que é “fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas”, comete dois equívocos graves. O primeiro é tratar os assédios moral e sexual como brincadeira ou piada. Não são.

Uma violência contra a mulher é uma violência, não importa a sua motivação

O segundo equívoco foi dar a entender que o seu comportamento reprovável tem origem na cultura machista no Brasil e não de sua própria escolha – ele que, durante oito longos meses, assediou e chegou a tocar nas partes pudendas da funcionária, que por várias vezes teria pedido para o ator parar com as investidas.

Ao compartilhar a sua culpa individual com todos os homens de sua idade e os das gerações anteriores, Mayer tenta diluir a sua responsabilidade. Neste caso, cabe a pergunta: quantos homens de sua geração agiram da mesma maneira?

Mayer não é responsável pelos atos das gerações que o antecederam. Nem as gerações antecedentes são responsáveis por aquilo que ele fez. “O fato de alguém não ser responsável pelo que uma geração anterior fez”, explica Voegelin, “não significa que esse alguém agora é inocente e tem o direito de cometer toda sorte de injustiças”. Pelo contrário, “cada um de nós também está obrigado a ser justo”.

Isso significa que a herança maléfica do passado deve ser superada pelos homens do presente com sentido de dever e de responsabilidade para convertê-la num ativo benéfico. Mayer agiu como herdeiro nefasto de uma conduta perniciosa, pois a sua geração já sabia que fazer o que ele fez é errado.

Embora diga que tenha mudado a partir do episódio, há trechos da carta que soam como um pedido de desculpas apressado com o único propósito de conter minimamente a destruição de sua imagem. Tenho imensa dificuldade em reconhecer um arrependimento sincero ao ler que, mesmo depois de tudo, ele insiste em qualificar o que fez como “brincadeiras de cunho machista” que não tinham a “intenção de ofender, agredir ou desrespeitar”. Para agradar é que não era.

Nessa história toda, um aspecto que é ao mesmo tempo irônico e simbólico dos tempos atuais: ao culpar o machismo pelo seu comportamento individual degradante, o ator utilizou a mesma expressão da vítima, que na carta em que denunciou o seu tormento usou uma linguagem ideológica (machismo, elitismo, opressão, sexismo, coronelismo). Não surpreende que o seu relato pungente tenha sido publicado num blog feminista da Folha de S. Paulo.

Uma violência contra a mulher é uma violência, não importa que a sua motivação tenha sido o machismo ou o islamismo. Quanto mais aceitarmos esse discurso ideológico que justifica condutas pérfidas, deixamos de lado o principal: uma sociedade responsável exige que todos, homens e mulheres, sejam respeitados. E que qualquer um que cometa atos de violência seja punido por aquilo que fez.

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