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Por que um músico que domina inteiramente seu ofício de compor polcas sente uma ponta de inveja dos consagrados grandes autores clássicos, especialmente Wolfgang Amadeus Mozart? Quem pode medir a distância entre a popular peça musical de origem polonesa e a grandiosidade de um Réquiem? É uma questão de temperamento do músico popular Pestana – personagem de Machado de Assis em “Um homem célebre”, um dos 16 contos de Várias Histórias –, que não experimenta nenhum prazer em ver suas peças tocadas Rio de Janeiro afora.

É paradoxal observar o famoso compositor ter começado a sentir há tempo uma forte repulsa contra as suas apreciadas peças musicais, destinadas à dança. Resta (mais) um ponto de interrogação: seria Pestana um daqueles gênios que repudiam a própria obra? Ela lhe dá o sustento e a fama. Mas essas coisas não fazem bem a Pestana. Por onde passa, ouve uma peça sua; as pessoas cantam-nas; cobrem-no de elogios; outros as assobiam. Ele odeia isso.

E sua fama se alastra como uma praga. Outros personagens, como Sinhazinha Mota e a viúva Camargo, conhecidas de Pestana, cada uma a seu tempo, morrem de mal súbito. Insidiosamente, dois sentimentos antagônicos combatem na arena de sua alma: o talento e o lugar comum. Os editores de Pestana o têm em grande conta porque as criações dele são lucrativas. O bem-estar do “felizardo” criador das músicas saltitantes provém das expressivas vendas de suas partituras e letras.

Entretanto, o sucesso que faz em toda a cidade o incomoda, pois lhe lança na alma uma semente de acidez. A cidade inteira aprecia suas peças. Dançam-nas, rodopiando pelos salões, em toda parte. Pestana se aborrece cada vez mais. O que, afinal, o deixará com bom humor: o sucesso de vendas das polcas ou o projeto de criar uma peça clássica?

O conto traz uma discussão universal: o que é arte? Por que temos ou não temos talento?

Percorrem rapidamente, por seu cérebro, as figuras dos músicos consagrados, porque são clássicos. Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach e Schumann. Sente uma portentosa admiração por esse seleto grupo. Sua mente vai consolidando a ânsia de produzir uma peça como as obras-primas que eles nos deixaram. O mau humor e a indiferença vão se insinuando cada vez mais na alma do protagonista, mesmo sabendo que o Rio de Janeiro inteiro dança alegremente suas músicas. Como diz o narrador, as peças fazem a população carioca “saracotear” alegremente até o sol raiar. Pestana está cada vez mais aborrecido e taciturno. Só pensa nos clássicos.

Sinhazinha Mota é o símbolo mais acabado da admiradora inconteste. Mas nem esse carinho suaviza o mal-estar do protagonista. Sucede que se trata do choque entre duas palavras-chave. Em Pestana, duelam a arte e a inspiração; o gênio e o asno renomado – sobretudo este último. “Estranha a alma humana”, fala o narrador onisciente.

Pestana é um personagem redondo, complexo. As demais personagens se encaixam entre as planas (simples). Ocupam papéis secundários no conto. Uma discussão sobre o que define arte cruza todo o enredo. Pestana tem talento? O leitor crê na capacidade desse homem assoberbado pela insegurança. Por que diabos o sucesso das “dançantes composições” não lhe agrada mais?

Há também uma questão que o narrador apresenta com certa desfaçatez: os estranhos nomes das peças – Não bula comigo Nhonhô; A lei de 28 de setembro; ou Candongas não fazem festas. Eis a tradicional ironia do autor, tratando de esvaziar a singularidade de nomes tão exóticos. Esses títulos não significam nada. São até ridículos. Ironia das ironias, o narrador cai na armadilha montada pelo autor. Os nomes são um tapume para que o autor diga: “Repararam! Enganei a todos!”

Pestana está cada vez mais sombrio. Quando caminha, parece carregar toneladas de frustrações aos ombros. A vida só acentua seu desalento por não conseguir compor, como Mozart, um glorioso Réquiem, sua obra-prima. A situação ambivalente de Pestana vai rumando para o clímax, quando detesta ser apresentado a outras pessoas como uma celebridade.

A fama das polcas o irrita e deprime. A amargura vira um pote de fel, quando a cisma para criar novas canções o invade insidiosamente. O fato é que adoece. Os editores, para segurar sua “galinha dos ovos de ouro”, oferecem vantagens ao autor. Tentam segurá-lo a todo custo. Nem a relativa riqueza que conquista com a música o obriga a enfrentar a realidade.

O compositor vai se afundando no mar revolto da inveja e da frustração. “Aos diabos com os clássicos!”, e parou de compor. O conto traz uma discussão universal: o que é arte? Por que temos ou não temos talento? Os fatores emocionais do músico o afastam da criatividade, em cuja vala comum suas frustrações adormecem.

Os editores, desesperados por estarem a perder seu melhor compositor, até lhe sugerem nomes atrativos para as peças, “joias” como Senhora Dona, guarde o seu Balaio. Mais uma vez a ironia do narrador vem para espezinhar a iminente derrota de Pestana. Pelo fato de o conto colocar a arte como tema, a narrativa tem um inequívoco teor metalinguístico: a arte discutindo a si própria.

Em certo ponto da história, Pestana pretende compor nada mais, nada menos que um Réquiem, como o de Mozart. No filme Amadeus, do tcheco Milos Forman, Mozart, no leito de morte, tentando finalizar o Réquiem que ficou devendo, fracassa. No desespero, o agonizante Mozart sugere que se traga seu desafeto Salieri, compositor medíocre que seria encarregado de terminar o Réquiem inconcluso. Apesar de Salieri não ter talento, é “iluminado” por Mozart e encerra o Réquiem como o gênio desejava. Depois disso, o medíocre compositor italiano volta a ser o que era. Um milagre: foi como se Mozart tivesse se enfiado na cabeça de Salieri.

No caso de Pestana, suas frustrações o derrubam no leito. Doente e moribundo, promete duas polcas aos editores; e a outra, para quem a fará? Uns dizem que a segunda era para quando “subirem os liberais”. É como outros trágicos personagens de Machado, que morrem sem ao menos aplacar as aflições espirituais por que passaram.

Caso Pestana tivesse conseguido terminar o Réquiem, o que teria sucedido? Nesse instante, Machado de Assis sai discretamente do quarto, por cuja porta entra o som saracoteado de uma polca de Salieri. Salieri? Não! Pestana! E a celebridade de um homem célebre, que questões ela levanta?

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