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Morreram algumas pessoas por causa da fa­­mosa gripe suína (ou, ainda, seria "Gripe A" ou "H1N1"? Confesso que me perdi na mudança de nomes; trato-a assim de suína, e os porcos que me perdoem). Muitas mais morreram atropeladas, afogadas, vitimadas por malária, gripe "normal", tuberculose, tiro, bordoada, forca, que sei lá eu.

Mas é a gripe suína que dá me­­do; é ela que leva as pessoas a usar máscaras, a querer o remédio que só o governo tem. É ela que leva os colégios a adiarem o reinício das aulas, que leva pessoas que não lavam as mãos antes de comer a querer tratamento no primeiro espirro.

Este fantasma da morte inesperada e supostamente evitável só apavora por ser novo. O mesmo su­­jeito que atravessa a rua sem olhar, que não se preocupa com noções mínimas de higiene, que mora em uma megalópole onde assaltos são coisas do dia a dia, apavora-se com a gripe suína por não conseguir encaixá-la na normalidade a cujos riscos ele fecha os olhos. Ela se torna um perigo ímpar, um raio em céu claro que pode atingir qualquer um, causando tal frenesi que as pessoas se esquecem dos riscos muito mais presentes que respondem por um porcentual muito maior de mortes.

Em grande medida, isso ocorre por ser mais fácil jogar para outros a responsabilidade. É o médico que diagnostica a gripe suína, é o governo que a trata. Somos nós, contudo, que devemos olhar para os lados antes de atravessar a rua, somos nós que devemos lavar as mãos antes de comer, somos nós, em suma, que devemos tomar as providências devidas para conservarmos, na medida do possível, a saúde que temos.

Os médicos tratam doenças. São bons nisso: tão bons, que tratamos como doença o que na verdade é a condição humana. Medicalizamos os nascimentos (e os médicos reclamam da existência de parteiras), medicalizamos a velhice (e assim morremos sozinhos no hospital), medicalizamos a própria noção de saúde (e é o médico que define se estamos ou não saudáveis). Com isso, abdicamos da responsabilidade em relação à nossa saúde e abrimos as portas para pânicos irracionais – como o da gripe suína – sem fechá-las para perigos reais e próximos, como os causados pela falta de higiene ou de cuidados elementares (no trânsito, na escolha de brinquedos e locais de brincadeira das crianças etc.)

Muitas das providências recomendadas pelos epidemiologistas para evitar a transmissão da gripe suína são conhecidas há mais de cem anos, podem evitar a transmissão de doenças que matam muito mais gente e, mesmo assim, são deixadas de lado por muita gente boa. Isso é devido à abdicação da responsabilidade pessoal no que diz respeito à saúde. Entre­gamos nossa saúde nas mãos dos médicos, sobrecarregando-os com uma responsabilidade que não têm como cumprir eficazmente. O médico não pode lavar nossas mãos, o médico não pode nos fazer olhar para os dois lados antes de atravessar a rua. É ele, contudo, que irá tentar nos salvar depois que contraímos uma doença evitável ou que sofremos um acidente idiota.

Nossos hospitais vivem lotados de pessoas que, em última instância, estão lá por vontade própria. É gente que sabia como evitar uma ou outra doença e, mesmo assim, a contraiu. É gente que tinha olhos para ver e reflexos em dia, e, mesmo assim, foi atropelada ao atravessar a avenida. É gente, em suma, que abdicou da responsabilidade de cuidar de si mesma.

Não podemos esperar que o governo ou os médicos assumam a nossa responsabilidade individual de cuidar preventivamente da própria saúde. Não é este o papel nem de um nem de outro. Médicos tratam doenças, o que é muito diferente de cuidar da saúde. Cuidar da saúde é evitar ficar doente e, quando se fica, evitar que a doença progrida. Essa é uma responsabilidade pessoal, e ao médico só compete diagnosticar e sugerir o tratamento. Quem toma o remédio é o doente, não o médico. Não é o médico quem tem de comer comida saudável, lavar as mãos, evitar excessos ou tomar cuidado no trânsito.

Se a gripe suína levar mais gente a cuidar da própria saúde, o pânico pode ter valido a pena.

Carlos Ramalhete é filósofo e professor.

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