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 | Justin Sullivan/Getty Images/AFP
| Foto: Justin Sullivan/Getty Images/AFP

O dia é quarta-feira. Entro num restaurante italiano próximo ao meu escritório. O restaurante faz parte de uma rede e tem algumas lojas na região. Sento-me com minha esposa após sermos muito bem recebidos pela hostess. O lugar é bem arrumado, mas não é chique ou requintado. Na verdade, uma placa na entrada anuncia alguns especiais de almoço por US$ 7, uma pechincha para a realidade local. Após estudarmos o cardápio, ela resolve pedir um torteloni de abóbora com pancetta, e eu decido por um fettuccine com molho de camarão.

Chegados os pratos, dou aquela garfada matrimonial no prato de minha esposa e descubro que ela fez uma escolha muito melhor que a minha. A garçonete passa por nossa mesa dois minutos depois e pergunta se gostamos da comida. Segue-se o diálogo:

“Gostamos, sim. Na verdade, eu gostei bem mais do que ela pediu que do meu prato.”

“Senhor, eu posso trocar o seu prato por um igual ao dela.”

“Sério? Puxa, obrigado, mas não precisa, não.”

“Não quero que saia daqui sem que sua experiência tenha sido a melhor possível. Será um prazer trazer um torteloni para o senhor.”

“Tudo bem, então. Aceito a cortesia.”

Somos peritos em deteriorar coisas boas com a nossa malandragem

Após me deliciar com aquele torteloni cheio de pancetta, saio do restaurante ainda sem acreditar que aquilo tinha acontecido. Estávamos em nossos primeiros meses na América, e mal sabíamos que aquilo aconteceria com frequência em diversos outros lugares. Estávamos descobrindo a beleza de ser cliente numa terra em que cliente é rei.

O dia agora é domingo. A descoberta de que um novo restaurante japonês com DNA brazuca abriu na região nos leva a marcar o almoço de domingo num lugarzinho bastante descolado e muito bem frequentado na cidade vizinha à nossa. O local lembra um micromercado municipal, com uma cervejaria, uma padaria francesa, um café, um açougue mais sofisticado, uma barraca de sucos e lanches naturais, uma chocolateria e uma casa de chá. E ali, no meio de todo esse pessoal gringo, um japonês quase que 100% brasileiro. Dono brasileiro, atendente brasileiro e sushiman brasileiro. Não fosse o cardápio em inglês, poderíamos nos imaginar comendo sushi no Brasil.

Após analisarmos as opções, fazemos o pedido: ceviche e sushis variados, com uma única ressalva: tirar o cream cheese do hot roll porque nosso amigo Eduardo, fresco, não gosta. Com o pedido anotado e pago – o preço, mesmo sendo um restaurante sem serviço de mesa, já deixou todos menos entusiasmados e de carteiras vazias –, seguimos para uma das mesas do mercado e aguardamos a mensagem de texto no celular avisando que os pratos estão prontos para serem retirados. Quase meia hora depois, chega a mensagem. Vou até o balcão, pego os pratos com a ajuda do meu amigo e voltamos à mesa. Provo o ceviche e tenho a impressão de estar comendo limonada de peixe. Eduardo vai com voracidade para cima do hot roll e descobre que está cheio de cream cheese. Voltamos ao balcão, eu imaginando que seria tratado como daquela vez no italiano. Segue-se o diálogo:

“Amigo, o ceviche só tem gosto de limão.”

“É a nossa receita, senhor.”

“Eu não gostei. É possível trocar por alguma outra entrada?”

“Não, senhor. Não posso trocar por outra coisa, a não ser que queira comprar um novo prato.”

“Certo. Deixa pra lá. Outra coisa: pedimos o hot roll sem cream cheese e vocês colocaram cream cheese.”

“Vamos fazer outro. Por favor, me entregue o que veio errado.”

Dois hot rolls com cream cheese depois e completamente insatisfeitos com o serviço, saímos dali para nunca mais voltarmos.

Há um ditado entre os brasileiros imigrantes que explica muito bem a diferença entre os dois casos que contei: tem brasileiro que sai do Brasil, mas não deixa o Brasil sair dele. Em vez de enriquecer a cultura local com as boas características de um brasileiro – simpatia, calor humano, versatilidade, adaptatividade etc. –, o sujeito traz as práticas ruins que tinha em sua terra natal. Fazendo isso, cancela a maior vantagem da imigração, a sinergia de culturas. Entendo que algumas práticas comerciais comuns aqui nos Estados Unidos sejam impraticáveis no Brasil, pois os clientes simplesmente abusariam delas. Dou um exemplo: muitos restaurantes daqui deixam copos menores ao lado das máquinas de refrigerante, para que o cliente possa beber água sem pagar. Ninguém fica fiscalizando para ver se você pegou água ou Sprite, mas as pessoas respeitam e pegam somente água (pelo menos a grande maioria delas). Consegue imaginar isso no Brasil? Agora, se você se dispôs a abrir um negócio em terras estrangeiras, seria pedir muito que os bons costumes locais sejam seguidos?

A mentalidade gersoniana ainda tem muita influência na vida diária de muitos brasileiros. Quem tenta levar vantagem em tudo não consegue enxergar a vida como uma oportunidade de exercer a generosidade. Nem as boas ideias que atravessam o Mar do Caribe (aquele que Lula chamou de Atlântico) são mantidas boas – vide os motoristas de Uber do Brasil, que desligam os aparelhos para gerar falsa demanda e alta no preço das corridas. Somos peritos em deteriorar coisas boas com a nossa malandragem. É por isso que sempre seremos o país de um futuro que nunca chega.

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