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 | Robert Viglasky/Netflix
| Foto: Robert Viglasky/Netflix

Já assistiu a The Crown, o seriado produzido pela Netflix contando o início do reinado de Elizabeth II? Se não, recomendo. Aproveita que é janeiro e o espírito das férias nos conduz. Além de deslumbrar pela beleza, é verdadeiro bálsamo moral, já vale a pena só por não apelar a cenas gratuitas de nudez, sexo e violência.

Não, não me tome por moralista alienado, não há nada de mais em cenas assim, desde que sejam decorosas, no sentido de estar de acordo com a história que se conta. Por exemplo, no filme A Última Ceia há uma cena de sexo entre os personagens de Halle Berry e Billy Bob Thornton que é indispensável para a história, necessária daquela forma quase explícita com que foi mostrada. Cena linda, como é linda a cena em que a rainha Elizabeth e o príncipe Philip discutem sobre seu casamento no seriado. Estão a discutir dentro de um carro e ficamos na perspectiva de quem está fora do veículo, atrás dele, com a câmera nos afastando aos poucos, só deixando ver os gestos indicando que a discussão era séria, mas sem escutá-los.

A cena em que Elizabeth recebe a notícia da morte do rei me fez lembrar de quando meu primogênito nasceu

O respeito com que a família real é tratada na série é exemplar. Para nós, brasileiros, que tivemos nosso imaginário sobre a monarquia deformado pela escola e pelas sátiras constantes em filmes e novelas, isso tem poder de cura. Quem não tem em seu imaginário, por exemplo, que dom Pedro I estaria com disenteria no dia em que declarou nossa independência, e que dom João VI seria nada além de um gordo porco, como retratado no filme nacional mais assistido nos anos 1990: Carlota Joaquina, Princesa do Brasil? Digo curativo porque o seriado retrata a realeza tal como ela é, na grandeza da sua cruz.

Quando Elizabeth recebeu a notícia da morte do pai, as cenas seguintes são magníficas, mostrando o que significa se tornar rainha na realidade. A partir dali, toda e cada circunstância, relevante ou não, exigiria dela, então e para sempre, que agisse como rainha, assumindo a grave responsabilidade decorrente. Os diálogos sobre o dever do monarca estão entre as melhores coisas da série, mas nada supera a carta da avó à nova rainha: “Assisti a três grandes monarcas caírem por falharem em separar o dever de suas indulgências pessoais. Enquanto você vive o luto por seu pai, também terá de viver por outra pessoa: Elizabeth Mountbatten, pois agora ela foi substituída por outra pessoa, Elizabeth Regina. As duas Elizabeths entrarão em conflito com frequência. O fato é que a Coroa tem de vencer – sempre tem de vencer”. Dali em diante ela é o tempo todo colocada à prova entre decidir como rainha – e arcar com a cruz da realeza – ou deixar de ser uma.

Essa cena do recebimento da notícia da morte do rei me fez lembrar de quando meu primogênito nasceu. Assim que o deixaram apenas com os pais e o peguei nos braços, lembro bem da paternidade encarnando, do dever pesando, da certeza de que nada seria como antes, que ali estava alguém a quem eu teria de cuidar, educar, amar para sempre. Não se tira folga nem férias da paternidade, apenas se abdica. Nossa responsabilidade de pais é como a dos monarcas, sendo o reino o nosso lar e os súditos, nossos príncipes a quem servimos. Ah, você não é pai nem quer ser? Deixo-lhe, então, com um de meus poemas preferidos de Fernando Pessoa, O Conde D. Henrique. Entendedores entenderão:

“Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
‘Que farei eu com esta espada?’
Ergueste-a, e fez-se.”

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