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Em 1789 a Revolução Fran­­cesa mudou o mapa da Europa e a mentalidade política no Ocidente. Pe­­ríodo longo, sangrento, encerrado com o retorno da Monarquia desnudada do glamour e poder que tinha no ancien régime; em 1917 a Revolução Russa fez algo parecido, com efeitos ideológicos para além do Ocidente. Em 1989, um evento pacífico, como que a coroar 200 anos politicamente intensos, mexeu mais com o mapa e as ideias do que todas as revoluções pretéritas: quando o muro de Berlim caiu, o mapa-múndi começou a se alterar no dia seguinte e só 20 anos de­­pois, já criada a República do Ko­­sovo, entrou em calmaria, sem abrupta gênese de novos países com no­­mes esquisitos, tipo "Nãoseion­­distão". As ideologias, bem, Fu­­kuyama chegou a identificar o fim da história e dos em­­bates das mundivisões.

De certa forma, a edificação e demolição do muro, não revelam superioridade do leque de ideologias que se abrigam sob o rótulo de capitalismo; apenas denotam a mediocridade da miríade de opiniões e interpretações sobre o mundo abrigadas na legenda do comunismo.

Quando se pretendeu dar ares de cientificidade à doutrina socialista, se estava a buscar ar­­gumento de autoridade para justificar atrocidades demasiadamente humanas, irracionais co­­mo o é a atividade política. O materialismo histórico, expressão do positivismo científico do século XIX, parecia ser método infalível de antevisão, de predição do futuro. Ai de quem fosse um "velho homem" atrapalhando a marcha triunfante da história a caminho do comunismo, no qual o "novo homem" – na ver­­dade o antiquíssimo bon sauvage de Rousseau – viveria no éden. A tigresa de unhas negras também inventa um lugar onde o homem e a natureza feliz vi­­vam sempre em comunhão.

Em 13 de agosto de 1961, quan­­do os guardas da República Democrática da Alemanha – a finada Alemanha Comunista – começaram a estender arame farpado e blocos de concreto para impedir o trânsito das pessoas que moravam na parte leste da cidade em direção à parte oeste que estava sob controle da Alemanha Capitalista, o socialismo onírico, o científico, o religioso, o odarado, cederam passo ao socialismo real, à realpolitik.

O concreto do muro foi a lápide de idéias generosas e ingênuas, típicas do idealismo que está muito próximo do cinismo e distante do ceticismo. O idealista radical tenta, ainda que a fórceps, moldar o mundo a suas ideias; o cínico diz que o mundo é tão mau-caráter quanto ele e assim a sua desonestidade é justa, pois "todos são imorais". A postura cética é respeitosa em relação à condição humana, não impondo moldes antinaturais e, por outro lado, não liga o padrão de moralidade às baixezas ou grandezas de indivíduos, fazendo distinção entre as coisas como são e como deveriam ser.

Volvendo ao muro, como explicar ao mundo que o novo homem estava fugindo em massa das delícias da ditadura do proletariado? Simples, basta mudar palavras para dar a ideia de que o muro se destina a impedir a entrada de indesejados e não a saída da população ansiosa por liberdade e desenvolvimento econômico. A novilíngua modula palavras na tentativa de que as pessoas acreditem cegamente. Assim, o muro de Berlim foi apresentado como barreira para conter o avanço fascista. É, multidões de fascistas morreram tentando saltar o muro para entrar na parte oriental de Berlim. Obviamente, não foi isso que ocorreu!

A democracia, não o capitalismo, foi vitoriosa na queda do muro de Berlim. Democracia da vida real, construída a partir da humanidade e não apesar dela. Nela, não há irmandade, com grandes irmãos, ao estilo Stalin; há cidadãos, iguais no espaço público, sem primogênitos e caçulas. A larga amplitude do rol dos que têm possibilidade efetiva de exercer poder e do leque de ocasiões para exercício, distinguem a democracia dos demais regimes políticos, especialmente daqueles que erigem muros físicos ou ideológicos para impedir a interculturalidade decorrente do contato entre pessoas livres.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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