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A deposição de Manuel Zelaya do cargo de presidente da República de Honduras teve cenas típicas das repúblicas de bananas que, na versão mais amena, tem soldados escoltando um bi­­godu­­do ainda de pijama e o despejando do outro lado da fronteira; na versão linha-dura atinge o ápice no paredón de fuzilamento, seguido de discursos nos quais se jura defender el pueblo hasta la última gota de nuestra sangre. Porém, nesse caso, o en­­redo, exceto pelo pijama, estava descrito na Consti­­tuição do país, tanto que a deposição foi pedida pelo Ministério Público e decidida pela Suprema Corte em ação penal na qual houve exercício da ampla defesa e, declarada a va­­cância, a interinidade ocorreu em conformidade com as normas constitucionais.

A discussão em Juízo versou sobre o artigo 374 da Constituição de Honduras que, ao proibir a reeleição, limitou claramente a possibilidade de o titular do Poder Executivo se converter em presidente ad infinitum. A linha decisória da Suprema Corte foi evitar as presidências imperiais, democracias plebiscitárias e tam­­bém as chamadas democracias sem estado de direito, nas quais a Constituição e as Leis são irrelevantes. Feitas as adequações, a deposição de Zelaya foi si­­milar à de Collor. Como nos sentiríamos se alguns gringos dis­­sessem que o impedimento do Collor foi golpe de Estado e se recusassem a reconhecer a legitimidade do governo de Itamar Franco?

A história da política centro-americana, prenhe de instabilidade política, gerou preconceito que faz a reação aos eventos ser quase alérgica. A urticária diante de qualquer coisa parecida com golpe de Estado anuviou a percep­­ção brasileira, levando a apoio além do razoável ao deposto. À primeira reação foram se sucedendo fatos que enfraqueceram as afirmações de Zelaya e deveriam ter sido acompanhados de maior prudência da nossa diplomacia, com a mudança de sustenido para bemol, suavizando os discursos. Não foi o que aconteceu. Na verdade, apesar da de­­monstração de que não era situação ordinária de golpismo, o Bra­­sil desceu oitavas no tom dos discursos, emitindo voz mais grave do que o momento exigia; quem fala grosso demais sem ter razão, fica com dificuldade para achar a tonalidade certa e desafina o resto da música. Depois que a embaixada foi transformada em palanque de Zelaya, aí a coisa ficou ruim mesmo, porque se de­­satendeu o princípio da não in­­gerência, orientador constitucional da ação tupiniquim nas relações internacionais. Inter­­ferimos na política hondurenha como se fôssemos os donos do pedaço.

As eleições gerais em Hon­­du­­ras estavam marcadas para o fi­­nal de novembro e ocorreram sem sobressaltos; elegeram-se autoridades municipais e nacionais, dentre elas, o novo presidente da República. A latere do processo eleitoral, correram negociações entre o deposto e o governo interino. O acordo, firmado em 30 de outubro, precisava ser submetido ao Congresso. O resultado foi impressionante: dos 128 parlamentares, 111 man­­tiveram a retirada de Zelaya! Edu­­cativos foram os argumentos que conduziram a essa votação expressiva: para modificar decisão judicial valem apenas os meios jurídicos, pois é contra-senso buscar o Estado de Direito por via que desrespeita o Direito, não devendo, portanto, um acordo político suplantar decisão da Suprema Corte.

Parece que temos a aprender sobre respeito às decisões judiciais nas lições de democracia e legalidade que vêm das funduras desse paisito da América Central. Além disso, passou da hora de respeitar a política interna de ou­­tro povo na mesma medida que exigimos respeito pela nossa intimidade política, ainda que ela seja feita de cenas tragicômicas de dinheiro em cuecas e meias.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP

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