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A gente se acostuma com os padrões que recebe e vive imerso como se tudo ao redor fosse natural, sem atinar para as construções culturais. Pesamos o prato na balança do restaurante sem saber qual a referência da medida básica, o grama (do grego, peso pequeno). Quinhentos gramas no prato! Exagerei! Todos com quem convivemos têm a mesma noção do quanto é meio quilo. Porém, como se definiu que o grama pesa um grama? Claro, a resposta está nos livros. Mas a questão não é essa, não se trata de saber que o grama equivale a um cubinho de um centímetro de água, até porque resta a indagação de como se definiu que um centímetro tem o tamanho x e não y.

Enquanto circulo pelo restaurante à cata de dois lugares, me lembro de que 2013 teve a marca dos anarquistas. A multidão que foi às ruas em junho pedia ordem e progresso, não era anarquista. O anarquismo, em matizes pacíficas ou violentas, aproveitou a deixa para ressuscitar como ideologia e, enquanto almoço, começo a imaginar como seria o mundo se essa tese fosse vitoriosa.

Antes de dar asas à imaginação, faço a mim uma advertência epistemológica: o anarquista discordará das conclusões às quais chegarei porque a premissa é completamente diferente. Eu parto do pressuposto cético de que os humanos são naturalmente competitivos e cooperativos; o anarquista nega à faceta competitiva a condição de software natural, atribuindo-a ao meio cultural. Para o anarquista, a eliminação das relações de mando e obediência limparia o terreno para desabrochar a flor da cooperação e, sem competição, todas as questões ordinárias da vida seriam resolvidas na maior alegria.

A minha parceira de hipóteses me ouve pacientemente, contesta vivamente algumas conclusões, e a refeição segue em meio a conjecturas sobre o modo de fazer pagamentos sem a autoridade do Estado. O dinheiro não vale por si, é apenas papel colorido ou peças de metal fajuto. O poder de compra do dinheiro está na confiança que o vendedor tem de que aquelas cédulas serão aceitas no momento em que ele

estiver na posição de comprador e assim sucessivamente, na infindável sequência de compras e vendas que fazem circular bens e serviços.

O valor atribuído às cédulas é imposto pelo Estado em situação de normalidade. Se houver hiperinflação, a impositividade desaparece. Sem padrão de valor, como definir quanto vale a comida no prato? O escambo é complicado porque o detentor de cada bem ou serviço precisa encontrar alguém que possua algo do seu interesse e essa pessoa deve se interessar também pela troca. O dinheiro permite transações rápidas porque existe definição prévia do valor e todos se interessam por ele porque podem passá-lo adiante pelo valor estipulado pela autoridade estatal.

Sem o padrão de contagem de tempo imposto pelo Estado, não dá para saber que hoje é antevéspera do ano-novo. Parece melhor a vida padronizada, pelo menos se pode desejar feliz ano novo e todos sentem a emoção da renovação.

Na fila do caixa, penso que no mundo anarquista eu teria de lavar a louça do restaurante para pagar a comida. Aceito lavar copos por uma refeição. Arear panelas vale dois almoços sortidos e fartos.

Bom réveillon!

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