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Vários filmes têm a tomada de consciência das máquinas como mote do roteiro: 2001 – Odisseia no Espaço, Matrix, Exterminador, Eagle Eye. Eles versam sobre as profundezas da existência humana, porém apenas esboçam traços das ideias centrais, apelando para bíceps, sagacidade e emoções dos heróis de carne e osso. Para escapar da monotonia filosófica, a ação suplanta a reflexão e o resultado como entretenimento é bom. No último da lista, apresentado em português com o nome de Controle Absoluto, um computador de identidade feminina, denominado Ária, ao ser danificado por um dos mocinhos, começa a transmitir todo o software e dados para outra máquina que está na órbita da Terra. Ária tenta sobreviver em outro corpo. Uma máquina morre?

Para responder é imprescindível dizer o que é vida. Um corpo biológico saudável, sem sistema nervoso apto à consciência da identidade, é uma vida? Quando um conjunto de programas computacionais gerar um sistema nervoso artificial, que adquira consciência de sua existência, haverá vida? A separação entre o corpo e a mente não é usualmente cogitada, mas a rigor o corpo é apenas o meio para a formação e hospedagem da mente. O corpo humano é um computador com pernas e braços, tanto que alguém tetraplégico mantém a dignidade de pessoa por causa da higidez da mente. Ainda que perdesse os cinco sentidos, mas o cérebro continuasse hábil para o processamento mental, existiria uma pessoa a ser considerada. A pessoa é a mente, não o corpo.

A medicina atual tanta estender a saúde do corpo para manter a mente viva. A longevidade talvez venha a se concretizar na transferência da mente do corpo velho para um jovial. A mente não envelhece. Ao contrário, quanto mais antiga, mais poderosa se torna em razão da síntese das experiências e conhecimentos. Mentes com mil anos ininterruptos de processamento seriam recurso valiosíssimo para a saga humana. O mais próximo disso é a cultura na sua feição de conjunto de percepções, entendimentos e modos de viver que têm distinção identitária em relação a outra cultura. Porém a cultura é um conjunto difuso de conhecimentos e crenças, não uma individualidade definida de processamento e formação de ideias. A cultura é mais produto que produtor; o indivíduo é mais produtor que produto da cultura. Hoje, as mentes morrem com a falência dos corpos; a cultura sobrevive ao ser transmitida a mentes novas.

Antes da existência de lojas que venderão corpos atléticos prontos a receber mentes milenares, é mais provável que se faça a transmissão do conjunto de programas e dados, que formam a pessoa, para máquinas. A mente definidora de uma individualidade continuaria sua existência num corpo que pode ter a aparência de uma pendrive, uma bola ou formato antropoide. Talvez haja um momento curioso, no qual mentes geradas em computadores sejam instaladas em corpos biológicos e as geradas de modo biológico sejam instaladas em corpos de outra natureza. A reprodução sexuada deixaria de ter sentido.

As viagens espaciais dificilmente serão feitas pelos corpos. Aglomerados de matéria com peso, volume e fragilidade que inviabilizam a escala temporal dos cruzeiros às estrelas. Contudo, transportar impulsos elétricos organizados na forma de mente é muito mais simples e as jornadas poderiam demorar milênios sem nenhum problema de saúde.

Caudal de delírios? Ficção (a)científica? Talvez. Mas pensar nessas coisas suscita dúvidas éticas aos borbotões e torna mais forte a convicção de que o fenótipo, a aparência de uma pessoa, é irrelevante. O marco zero da condição humana é a capacidade de pensar e o momento mágico é a partilha do pensamento.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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