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A transformação das vítimas em algozes é um fenômeno comum a todas as revoluções. Foi assim com Robespierre, Lenin, Stalin, Trotsky, Mao, Fidel. Não poderia ser diferente no caso da revolução cultural brasileira: aqui também os antigos perseguidos pelo regime militar agora se comportam como perseguidores. Dizia a letra de Chico Buarque: "Você vai pagar e é dobrado / cada lágrima rolada / nesse meu penar". Esse "você", que um dia foi o general Médici, com o tempo tornou-se a palavra usada para designar qualquer um que contrariar o cantor.

Pior é que a moda pegou: o ritual do bode expiatório virou a obsessão das celebridades artísticas nacionais. Quando o talento desses criadores, muitas vezes já escasso na origem, vem a secar completamente, por morte ou vazio espiritual, aparecem então ferozes jagunços da cultura, papagaios de pirata decididos a zelar por aquilo que poderia ter sido, mas não foi. Eles sempre acabam escolhendo uma categoria para representar os "inimigos do povo", os quais variam conforme a necessidade: podem ser os burgueses, os judeus, os militares, os policiais, os jornalistas, os empresários, os médicos. Agora são os biógrafos.

No mundo maravilhoso das biografias autorizadas, as pessoas são obrigadas a se comportar com a mesma superficialidade de uma letra ruim de Caetano Veloso. E ai dos que ousarem questionar os totens!

Estou lendo o livro Passeando por Paulo Leminski, do escritor londrinense Domingos Pellegrini. A obra, como se sabe, teve a publicação vetada pelos familiares de Leminski, mas acabou sendo distribuída pelo autor através da internet. Eis que chego a uma bela imagem: Pellegrini lê trechos do Catatau aos dois netinhos – e chora com a lembrança do amigo. Impossível não se emocionar.

Se até uma homenagem afetuosa como a de Pellegrini foi vetada, o que dirão os herdeiros de Leminski quando alguém recordar que o poeta curitibano estava longe de ser uma unanimidade literária? É permitido lembrar que Bruno Tolentino o chamou de "poeta-piada"? Quem sabe seja o caso de reler as críticas de Wilson Martins, uma delas intitulada "O culto delirante em torno de Leminski". Ou esses textos devem ser proibidos também?

Quase 25 anos depois da morte de Leminski, podemos dizer com absoluta certeza que ele nunca chegou ao nível de Bandeira, Jorge de Lima, Drummond, Cabral, Cecília, Tolentino. Entre os vivos, Gullar e Alexei Bueno o superam de longe. Mas precisamos reconhecer: Leminski era bem melhor que seus atuais guardiões.

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