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O pai de um amigo está muito doente. Esta crônica é dedicada a ambos: o pai e o filho.

Minha vista anda falhando. Olhei de relance para um amigo, à distância de alguns metros, e o vi 30 anos mais velho. Não sei o motivo dessas falhas no tempo; só sei que acontecem comigo.

Euclides da Cunha fala de uma doença que afetava a visão dos sertanejos, a hemeralopia. Define-a como a "falsa cegueira" que paradoxalmente prejudica a visão noturna do homem em consequência do excesso de luz durante o dia.

São João da Cruz já nos ensinava que a luz de Deus tem este efeito na vida dos homens: ela é tão forte que apaga os outros reflexos da luz, assim como o Sol oculta as estrelas durante o dia.

Borges diz que um escritor genial, como Kafka, tem a estranha qualidade de "inventar" seus precursores. Jamais repararíamos que Kafka tem precursores na antiga literatura chinesa se os escritos do autor de O Processo não chegassem ao nosso conhecimento. Hoje identificamos autores kafkianos que nasceram antes de Kafka!

Da mesma forma, a vida e a ressurreição de Jesus determinam uma nova leitura dos antigos textos bíblicos: passamos a ver o Antigo Testamento numa perspectiva cristológica. Podemos enxergar as palavras e ações de Cristo antes do nascimento de Jesus.

Algo semelhante acontece com as pessoas que amamos ao longo da vida. A luz que elas emitem, embora não tenha força para apagar as outras luzes da realidade, continua a existir, indiferente às fronteiras temporais de nascimento e morte. Iluminam sem distinção o passado e o futuro.

Durante 38 anos convivi com meu pai, e felizmente ele se recusa a sair de minha vida. Vejo-o nas caminhadas, nas multidões, como um figurante nos filmes de Woody Allen e Terrence Malick, nos espelhos das lojas comerciais, nos gestos de meu filho de 2 anos. Por falar em meu filho, acredito que ele já existia antes de nascer em 2010; apenas eu não sabia vê-lo, em minha cegueira egoísta.

Talvez o homem que eu vi 30 anos mais velho seja o meu pai; talvez, o pai de meu amigo; talvez, Euclides da Cunha; talvez, São João da Cruz; talvez, eu mesmo com 72 anos.

Voltei para casa pensando na imagem do meu amigo 30 anos mais velho. A cada mês de janeiro, eu abro a porta de casa e parece que todos os que partiram andam por aqui. Minha avó está no quarto, a rezar para sua xará Maria. Meu avô foi à esquina e estará de volta em poucos minutos, trazendo pão. Minha mãe fala ao telefone, no escritório. Meu pai sentou-se na varanda a ler, fumar e tossir. A luz de janeiro ofusca as luzes da morte.

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