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Escutei o verdadeiro silêncio pela primeira vez em fevereiro de 1982, quando minha família se mudou de São Paulo para Araçatuba – quer dizer, da metrópole para uma cidade interiorana média – e passamos a morar numa casa de três quartos no Jardim Nova York, bairro que, apesar do nome cosmopolita, ficava afastado do Centro e quase não tinha barulhos à noite. Durante nosso primeiro jantar na nova casa, meus pais, acostumados às buzinas, às freadas de ônibus e ao ronco dos motores paulistanos, espantaram-se com a profundidade da quietude noturna. Eu e a Fernanda, crianças, também ficamos surpresos com o silêncio. Era quase possível escutar as batidas de nossos quatro corações naquela noite. Faz 33 anos. A idade de Cristo.

Voltei a ouvir o silêncio dois anos depois – já morando em outra casa e outro bairro, mais central –, quando todos os dias acordava às 5 da manhã para ir ao treino de handebol, esporte em que atuava como goleiro bastante frangueiro, reserva do meu amigo Bigode, um pouco menos frangueiro do que eu. No caminho para o treino, que acontecia na quadra do colégio, eu me surpreendia com o silêncio da cidade ainda sonolenta, enquanto o sol nascia por detrás da linha ferroviária.

No silêncio da manhã, leio as notícias do dia, e geralmente não são boas notícias. Petrolão, greves, desabastecimento, impostos, aumentos, acidentes, atentados, prisões

Certa vez viajamos para Três Lagoas para jogar contra o time local. Perdemos de 10 a 9; eu joguei o segundo tempo e sofri o gol decisivo com uma bola por entre as pernas, “no meio das canetas”, para usar uma expressão dos meninos da época. Foi menos vexatório do que na fatídica ocasião em que enfrentamos o time de um colégio da periferia e sofremos uma goleada tão grande que tenho vergonha de escrever o placar aqui.

Agora, aos 45 anos, voltei a acordar às 5 da manhã, não mais por causa do handebol, no qual eu sabiamente não segui carreira, mas por dever jornalístico. No silêncio da manhã, leio as notícias do dia, e geralmente não são boas notícias. Petrolão, greves, desabastecimento, impostos, aumentos, acidentes, atentados, prisões. Bem cedo também eu rezo o terço – mistérios da glória, mistérios da dor, mistérios da luz, mistérios da alegria. Isso me ajuda bastante.

Ao levantar mais cedo, reencontro após muitos anos o meu velho amigo silêncio. Então eu me lembro do jogo perdido em Três Lagoas. Aquela foi a primeira viagem que fiz sem meus pais. Quando o ônibus do colégio nos trouxe de volta para Araçatuba, vi que o pai e a mãe me esperavam na calçada. Fiquei com um pouco de vergonha dos outros jogadores, mas no fundo estava contente. Trinta anos me separam daquela alegria silenciosa, em que os nossos corações batiam, enquanto o sol ia nascendo quietamente atrás da linha de trem.

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