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A senadora Marta Suplicy pede demissão – não sem provocar alarido – do Ministério da Cultura. Em Curitiba, pelo menos 2 mil pessoas se filiam ao movimento Acorda Cultura, e pedem um aparte com o prefeito Gustavo Fruet. A rejeição à gestão do cineasta Marcos Cordiolli é sem meios tons. Sim, são só dois exemplos oriundos de um universo que costuma se diluir nas águas do entretenimento e das boas intenções, nunca faltando quem diga "deixa disso". Mas foi-se o tempo em que a cultura se limitava à cereja do bolo, passível de um "taca-le verba". Partindo dessa premissa, nem Marta nem a turma do Acorda se limitam a ecos de um mundo paralelo. E essa é a questão.

É flagrante que o entretenimento – para tristeza dos puristas – representa a terceira indústria do mundo, tema de pesquisas profundas encabeçadas por gente como Gisela Taschner e Luiz Godói Trigo. Melhor abstrair o sentido alegórico da palavra e admitir: "entreter" foi o melhor que se pôde arrumar. Nesse raciocínio, por entretenimento se entende ir ao parque de diversões, ao campo de futebol, assistir ao Oscar, ver o último Jogos Vorazes, mas também ir a uma exposição de arte conceitual. Trata-se de um imenso guarda-chuva no qual se abrigam os shows da festa do leite no interior e o São Paulo Fashion Week. A vida não é justa nem bate bem.

O fato é que mais bobo é quem menospreza essa grande pororoca na qual explode inclusive o que se convencionou chamar de cultura – a alta e a baixa. Não vem ao caso aqui. O que está em discussão, em meio às mágoas de Marta Suplicy e dos cidadãos que se sentem órfãos da Fundação Cultural de Curitiba (um dos órgãos que um dia fizeram a cama da cidade aqui, ali e acolá), é uma certa cegueira em relação ao lugar da cultura. Está-se diante de um flagrante desperdício – de talentos. Não tem perdão.

Não há mais tempo para deixar de enfeitar o bolo, caso alguém ainda teime em recorrer a essa metáfora indigesta, a cada vez que os caixas se esvaziam. Sem cultura não há cidade que mereça este nome. E sem cidade somos uma multidão de brutamontes insanos disputando o mesmo espaço, na base da selvageria. Dilma e Fruet que façam suas escolhas.

Dada a nova ordem mundial – e como se lida com esse guarda-chuva milionário –, não tem mais como retardar: cultura tem de ser política de Estado. Se não valerem todos os argumentos óbvios, que seja por uma questão de segurança pública. A cultura tem o poder de devolver as pessoas às calçadas, o que a coloca num dos lugares principais da mesa da governança municipal. Em tempo – melhor abrir mão da ideia de que uma "virada", ou que nome tenha, resolve o problema. Ajuda, mas cultura de fato não se dá pelo evento. É feijão com arroz servido no prato nosso de cada dia.

O pesquisador Teixeira Coelho, em seus escritos sobre a dobradinha cultura e cidade, destaca com veemência o quanto a arte consegue alterar o que é mais próprio da cidade – a vida em comum. Ele não está se referindo ao consumo da cultura clássica, ainda que, é evidente, em sã consciência, considere ser esse um dos degraus a galgar. Fala de algo mais específico: questões corriqueiras, como a mobilidade, as relações de vizinhança, o consumo, a educação – entre tantos –, podem ganhar oxigênio se houver ação cultural à vista. Poesia? Não: mudança de mentalidade, esse santo remédio. Trata-se de acreditar que o desenvolvimento humano se antecipa ao desenvolvimento econômico.

A equação não é tão simples quanto parece. O argentino Nestor Canclini afirma que a fatura da cultura exige tratos com o imaginário da cidade, sem o qual o que sobra é o clichê. Não se trabalha com a cultura – nem se cria uma política com ela – sem compreender as cartografias mentais dos que ali vivem. Exige-se empenho antropológico, ou o que quer que isso signifique, para captar as camadas em que circulam as veias do receptor, passando pela derme. Em outras palavras, muita parafernália artística não raro fica no barulho. Se não virar palavra – coisa dita por quem consome a cultura –, vira poeira cósmica da era dos eventos. Cultura é conversa – e isso dá trabalho. Do contrário, está-se a anos-luz do que se entende por cultura.

O debate, como se vê, rende. Só tocando o imaginário para conseguir contrapor o que as cidades são e o que as pessoas gostariam que elas fossem. A cultura tem tutano para fazer essa ponte entre realidade e desejo. Ela é nossa voz comum, capaz de nos tirar da preocupação torpe com o buraco da frente da nossa casa. Parece um papo cabeça demais. Mas é de parar o trânsito. Melhor não provocar.

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