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| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tem diante de si uma decisão que pode representar a continuação de uma longa tradição de impunidade no Brasil ou o início de um novo modo de proceder, em que a lei é efetivamente respeitada e aqueles que a violam efetivamente pagam por seus atos. Trata-se da questão das multas aplicadas a caminhoneiros e empresas de transporte por descumprimento de decisões judiciais que ordenavam a liberação de estradas bloqueadas durante a greve de maio deste ano. No total, foram 200 empresas multadas, e 150 recorreram à Justiça contra a punição. O valor total das multas chega a R$ 700 milhões.

Naquela greve, é preciso lembrar, os caminhoneiros colocaram o país de joelhos em nome de demandas puramente corporativistas. Houve desabastecimento de alimentos e combustíveis, ambos itens de primeira necessidade, e praticamente todo o setor produtivo foi afetado. O movimento foi tão bem-sucedido em seu esforço de propaganda que, apesar dos transtornos criados para toda a população, inclusive com a grave violação do direito de ir e vir, conquistou o seu apoio. Os brasileiros sonharam com o início de uma revolta generalizada contra os impostos, mas acordaram com reduções voluntaristas nos preços do diesel e um tabelamento dos preços do frete que terá consequências inflacionárias.

Os caminhoneiros colocaram o país de joelhos em nome de demandas puramente corporativistas

Enquanto analisava a Medida Provisória 832, que dava à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a possibilidade de publicar tabelas com valores mínimos para o frete, o Congresso Nacional incluiu no texto uma anistia completa às multas aplicadas durante o período de greve. Em 9 de agosto, o presidente Michel Temer sancionou a lei, mas vetou a anistia, mantendo as punições pecuniárias. Em 20 de agosto, Alexandre de Moraes realizou audiência de conciliação no STF e ouviu representantes do setor de transporte. As empresas alegaram que não participaram dos bloqueios, jogando toda a responsabilidade sobre os caminhoneiros autônomos.

Na própria audiência, o relator já tinha deixado claro que era contrário a uma anistia total, mas que poderia analisar casos específicos em que as empresas tivessem como comprovar o fato de terem sido vítimas, e não organizadoras, dos bloqueios. No último dia 10, a advogada-geral da União, Grace Mendonça, enviou manifestação ao Supremo defendendo a manutenção das multas às empresas “que não consigam apresentar elementos de informação conclusivos que evidenciem justa causa para descumprimento da decisão cautelar”; já a responsabilidade de algumas empresas poderia ser excluída ou amenizada no caso de “circunstâncias específicas” comprovadas, uma posição que parece bastante razoável.

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Há um aspecto da negociação, no entanto, que merece observação atenta. Em troca do cancelamento das multas, ou de sua redução (a proposta baixaria o valor de R$ 100 mil por hora para R$ 10 mil por dia de descumprimento de decisão judicial), as empresas oferecem a garantia de que não fomentariam ou incentivariam novas greves de caminhoneiros. Uma oferta curiosa, porque, para início de conversa, a legislação proíbe os locautes (paralisações organizadas pelos empregadores, não pelos empregados). E, ainda que fosse impossível vincular formalmente as empresas a uma nova paralisação, ela continuaria sendo ilegal devido a seu caráter de violação de direitos básicos do cidadão. Em outras palavras: em troca de uma punição mais branda por ter desobedecido a Justiça no passado, as empresas prometem não colaborar com novos desrespeitos à lei no futuro. Como esperar que esse tipo de oferta seja levado a sério numa negociação com a própria Justiça?

Anistias a líderes de motins de policiais e bombeiros, perdão de dívidas tributárias, indultos os mais diversos: principalmente pela caneta do Legislativo ou do Executivo, criou-se no Brasil uma tradição pela qual são poucos os que arcam integralmente com as consequências de suas ações. A certeza do abrandamento ou até do cancelamento da punição é um poderoso incentivo a novas transgressões, e por isso a importância da decisão de Alexandre de Moraes transcende os valores cobrados: trata-se de virar o jogo e dar início a uma cultura em que a lei e a Justiça são levadas a sério.

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