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O presidente do Chile, Gabriel Boric (ao centro), recebe o texto da nova Constituição das mãos da presidente da Assembleia Constituinte, María Elisa Quinteros, e do vice-presidente da assembleia, Gaspar Domínguez, na sessão de 4 de julho de 2022.
O presidente do Chile, Gabriel Boric (ao centro), recebe o texto da nova Constituição das mãos da presidente da Assembleia Constituinte, María Elisa Quinteros, e do vice-presidente da assembleia, Gaspar Domínguez, na sessão de 4 de julho de 2022.| Foto: Alberto Valdés/EFE

Na última segunda-feira, a Assembleia Constituinte chilena entregou ao presidente Gabriel Boric o texto do que deve ser a nova Constituição do país, caso ela seja aprovada em um referendo marcado para 4 de setembro. Como já era possível antever graças à composição da assembleia eleita em maio de 2021, dominada majoritariamente pela esquerda e que ganhou impulso com a vitória de Boric na eleição presidencial de dezembro de 2021, o novo texto não prima pela busca de reconciliação e criação de pontes em um país dividido; em vez disso, tenta avançar ao máximo as pautas ditas “progressistas” – e, com isso, pode ter semeado o próprio fracasso.

Que o Chile buscasse uma nova Constituição em vez de seguir remendando eternamente a carta do período ditatorial de Augusto Pinochet era algo natural; esta é uma etapa pela qual inúmeros países (incluindo o Brasil) passaram ao trocar regimes autoritários pela democracia. O Chile, no entanto, não apenas demorou demais para dar esse passo – a ditadura terminou em 1990 –, como resolveu fazê-lo em um momento politicamente conturbado, com protestos violentos nas principais cidades do país em 2019. A abstenção em um país onde o voto é facultativo teve papel importante: apenas 51% dos eleitores votaram no plebiscito em que 78% dos votos foram favoráveis à nova Constituição; e apenas 41,5% dos eleitores participaram da escolha dos constituintes. Os apoiadores da esquerda não deixaram de ir às urnas e deram a seus escolhidos a maioria absoluta da assembleia, deixando a direita e centro-direita com menos de um terço das cadeiras, incapazes de bloquear propostas mais radicais.

Em vez de aprimorar o modelo liberal para levar prosperidade aos mais pobres, e com isso contemplar a parte do país que rejeita mudanças mais radicais, os constituintes de esquerda resolveram reinventar a roda a seu bel-prazer

E, com o caminho livre, os ditos “progressistas” trouxeram à luz uma Constituição “abrasileirada” e que estica a corda para o lado oposto ao do autoritarismo pinochetista. O texto é extenso, com 372 artigos, e garante uma espécie de “direito a tudo”: trabalho, moradia, alimentação, cidade, esporte, lazer, “remuneração equitativa, justa e suficiente” e “gozo pleno e livre da sexualidade”. No entanto, os constituintes não explicaram muito bem como tantos direitos serão viabilizados pelo Estado chileno, permitindo concluir que, no fim, o Chile imitará o Brasil não apenas no papel, mas também na prática: um país onde a lei garante inúmeros direitos, mas o Estado não é capaz de proporcionar seu exercício pleno.

Os constituintes também inverteram completamente a lógica econômica herdada do pinochetismo, em que o Estado praticamente se ausentava de serviços importantes, deixando tudo a cargo da iniciativa privada, sem nem mesmo exercer um desejado papel subsidiário. De acordo com a nova Constituinte, previdência, saúde e educação passam a ser obrigação do Estado, com as redes públicas assumindo o protagonismo e deixando a iniciativa privada com atuação mais complementar – ou seja, saltando de um extremo a outro sem considerar o saudável meio-termo que o princípio da subsidiariedade oferece.

Por fim, mas não menos importante, a esquerda também cristalizou na Constituição várias pautas identitárias e morais. A carta garante o direito ao aborto – que terá de ser regulamentado por lei posterior – e à eutanásia, além do “pleno reconhecimento da identidade” das pessoas “em todas as suas dimensões e manifestações, incluindo as características sexuais, identidades e expressões de gênero, nome e orientações sexoafetivas”, acrescentando que “o Estado garantirá o pleno exercício deste direito por meio de ações afirmativas”.

A esquerda, ao olhar apenas para a composição da assembleia constituinte e para a vitória de Boric, resolveu ignorar que a direita teve expressivos 44% dos votos no segundo turno do pleito presidencial, mostrando um país dividido, e desprezou os méritos do liberalismo aplicado até agora, que trouxe bons resultados econômicos e fez do Chile um líder em desenvolvimento na América do Sul. Em vez de aprimorar este modelo para levar essa prosperidade aos mais pobres, e com isso contemplar a parte do país que rejeita mudanças mais radicais, os constituintes resolveram reinventar a roda a seu bel-prazer.

Não surpreende, portanto, que as pesquisas para o referendo de 4 de setembro – em que o voto, desta vez, será obrigatório – estejam registrando uma virada: até março, ainda indicavam a aprovação do texto, mas desde então vêm apontando para a rejeição à nova carta, embora as margens sejam bastante diversas em cada sondagem. A esperança da esquerda já não repousa tanto no mérito que eles enxergam no texto que redigiram, mas no que ela está chamando de “aprovar para reformar”, admitindo (ou fingindo admitir) que no futuro o texto precisará ser alterado. Quem também joga a favor do novo texto é o cansaço do cidadão chileno, já que a rejeição no referendo significará que a Constituição pinochetista seguirá vigorando, mas todo o processo de redação de uma nova carta precisará ser retomado do início, esticando a sensação de instabilidade que já vigora desde 2019.

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